terça-feira, 11 de abril de 2017

Um olho-míssil e o desejo na Academia

A exposição Olho-míssil, que (re)inaugurou o Espaço das Artes (antiga sede do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) foi marcada por uma série de tendências mundiais no campo das artes plásticas. Num momento em que a Prefeitura de São Paulo opta por cobrir de cinza diversos grafites feitos nas ruas da cidade, capital mundial desta modalidade de arte, um dos artistas da exposição leva para o espaço museológico sua caligrafia, sua força, sua coleção e seus grafites.
No mais autêntico estilo “bakhtiniano”, Danilo Bezerra expõe uma complexidade de linguagens dialógicas contemplando distintas visões de mundo e vozes no campo da arte contemporânea. Resgato o crítico russo Mikhail Bakhtin para enfatizar que a língua, carregada de ideologias e práticas, sendo usada pelos povos como materialização de processos físicos, fisiológicos e psicológicos, deve ser entendida no âmbito das relações sociais. E o que propôs o artista com as palavras grafitadas, neste contexto, foi um diálogo.
Visitei a exposição várias vezes. Havia lá a história do Partido dos Trabalhadores colada numa das paredes, esculturas inspiradas em seres marinhos, vídeos e projeções de brigas políticas e atentado terrorista, fotografias de realidades cotidianas, gravuras (algumas das quais servindo de estampa para tecidos nas imagens de pessoas nos metrôs e trens paulistanos) e grafites. Quase tudo à mostra!
A arte de grafitar existe desde o Império Romano e consiste em inscrições caligrafadas ou desenhos pintados sobre suportes que normalmente não são destinados à tal manifestação. Assim, a fachada lateral do Espaço das Artes foi grafitada com extintores de incêndio carregados de tinta preta, configurando-se numa ação transgressora. Acompanhei parte do processo e alguma movimentação que (diga-se de passagem), para um local de conflitos recentes entre estudantes e polícia militar dentro do campus, arena contra o autoritarismo e a favor de ocupações de blocos ociosos para residência e permanência estudantil, serviu para repensarmos novas formas de linguagem que efetivamente sirvam para o diálogo. Avesso à toda forma de violência na universidade pública, deve haver espaço para todos.
Passada a euforia da noite do vernissage, quando os postes deram lugar às luzes vermelhas e simultaneamente aconteciam várias festas dentro da universidade numa movimentação escandalosa (porém, pouco divulgada), não havia baderna no lugar. O clima favorável daqueles dias deve ter ajudado os alunos de graduação em artes plásticas a consolidar os encontros com grandes nomes da arte contemporânea brasileira, com referências da Filosofia e da crítica, compondo mesas de discussões sobre o panorama da arte e do papel do artista na sociedade.
Uma imensa quantidade de obras de arte guardadas numa espécie de parede falsa, com divisórias ocas, foi revelada através de dois buracos feitos em tais paredes. Embaixo de uma dessas aberturas foi grafitada a palavra “desejo”. Tratava-se, além de expressão de impacto, de uma valiosa reserva técnica, com obras de artistas nacionais e internacionais. Muitas sem assinatura, mas com um adesivo atrás indicando um número em cada uma delas.
Compreendendo a liberdade de expressão plástica, dia após dia a exposição foi tomando forma e sempre era acrescentado algo novo à instalação de Danilo Bezerra. Paulatinamente, verificou-se que não era uma instalação estática. Foram postas uma cadeira de observação elevada (daquelas que bombeiros usam nas praias), diversas garrafas cheias de água, outras frases e palavras grafitadas nas paredes, chegando quase próximas ao teto. Havia na instalação duas grandes telas com o fundo grafitado com a palavra “censurado”. Na descrição da obra o artista deixa evidente (ou insinua) que o trabalho fora censurado pela curadoria da exposição.
Acompanhado pela psicóloga e amiga moçambicana Aida Binze, pensei nas propostas e nos objetos expostos. A cada passo que dávamos refletíamos sobre os possíveis porquês daquilo. Tudo com valor fundamental da imaginação criativa. Num instante, movido pela palavra grafitada na parede, retirei do “buraco do desejo” uma das obras e a coloquei pra fora. Era uma pintura sobre madeira. Fiz um rabisco sobre um bloco de anotações e a fotografei. No caminho para o CRUSP (Conjunto Residencial da USP), encontrando duas gavetas velhas num entulho, já fora do museu, arranquei os fundos de madeira e reproduzi a imagem com pincel e tinta a óleo. Assinei. Guardei o número (da obra original) e a obra que fiz para, num possível encontro, presentear o artista da instalação e chegar a uma síntese da vivência. Afinal, seria o desejo um número censurado?
Noutra ocasião convidei um amigo para ir comigo visitar o espaço novamente e, para minha surpresa, as duas enormes telas (com o fundo grafitado “censurado”) que no início da exposição encontravam-se de costas entre os dois buracos, estavam à mostra de frente e os buracos tampados com elas. Tratava-se de uma cópia da “Grande Onda de Kanagawa”, do artista japonês Katsushika Hokusai. Se todo conhecimento se dá de maneira coletiva, não seria diferente no campo da arte. Estamos sempre inovando, fazendo releituras ou imitando os mestres. O encanto da pintura (enquanto coisa e ao contrário do grafite) está também no fato de ela poder ser levada para outros lugares e alcançar outros públicos na possível mobilidade. E por que não dizer, na posição das obras em relação às arquiteturas e às outras obras de arte. Ali, a Grande Onda revelada foi, sem dúvida, o grande destaque da exposição, pois além de bela e muito bem pintada, era (acima de tudo) uma construção baseada numa obra já existente.
Às vezes não existe a necessidade de conhecer os artistas pessoalmente, pois as obras falam por si, mas não me contive. Pesquisei uma fotografia de Danilo Bezerra no Google e o reconheci ao lado do Restaurante Central da Universidade. Me apresentei e pedi que ele me falasse sobre o seu trabalho na exposição Olho-míssil. Peguei a pintura que fiz, expus meu processo de criação (sem me preocupar com juízos de valores, pois, afinal, era resultado de algo censurado) e dei a obra pra ele. Disse que minha intenção era refletir e talvez redigir um texto sobre a mostra para um blog. Gentilmente ele me levou ao Espaço das Artes com o trabalho debaixo do braço. Eu que nunca tive sequer uma fotografia de minha autoria pendurada na parede (ou pelo menos nunca vi), estava lá com um dos autores da mostra dentro dos corredores “secretos” do prédio. Era um mundo encantado cheio de cores, luzes e cheiros (de tinta fresca). Havia uma rede de dormir e em outras paredes (não visíveis ao público) do interior do museu, mais grafites. Um dos mais envolventes era a palavra “índio”. Seguindo a lógica da sensação, me deitei na rede (herança indígena) e balancei meu corpo. Naquele momento, Danilo retirou da sacola um martelo, alguns pregos e cravou a pintura sobre a parede onde se encontrava o acervo. Era, para meu espanto, a única pintura pendurada lá dentro (todas as outras estavam empilhadas no chão). Talvez ele não tenha percebido a inquietude que senti naquele momento. Para além de minha ousadia, fiquei feliz por ele ter gostado.
Após fotografar nosso encontro e traçar um perfil de suas preferências criadoras, entramos no recinto público. Observamos em silêncio o cenário. Me falou da seriedade de seu trabalho, do que significa toda aquela linguagem e por fim, fomos embora. A última pergunta que ele me fez foi o que eu tenho para dizê-lo sobre a Amazônia. Eu respondi que iria pensar. Uma semana depois de nosso encontro a exposição chegou ao fim e a pergunta ficou sem resposta. Fascinado pela água, cheguei a divagar sobre a Amazônia em várias laudas, inspirado apenas naquela instalação. Talvez seja mais um desejo a cumprir: conhecê-la.
Danilo Bezerra graduou-se em Artes Plásticas pela USP neste ano. Inacabado, como todos que se propõem a estar na linha de frente da arte contemporânea brasileira, mas com um caminho promissor e uma coragem incrível para criar. Os outros expositores, incluindo os da exposição “Pós-poéticas” (pós-graduação) que aconteceu simultaneamente foram: Alexandre Camanho, Anna Souza, Caio Righi, Daniel Suarti, Fernando Aidar, Isabella Finholdt, João Gonçalves, Julia Albuquerque, Juliana Araujo, Lívia Santos, Lola Ramos, Marcela Fleury, Mariana Utzig, Marina Castro, Marina Zilbersztejn, Paulo Delgado, Pedro Adario, Pedro Farah, Romeu Mizuguchi, Victor Jenhei (da exposição Olho-míssil) e Ana Tomimori, Andréa Tavares, Cassia Aranha, Filipe Barrocas, Inês Bonduki, Julia Mota, Juliano Gouveia dos Santos, Pedro Hamaya, Renato Pera (da exposição Pós-poéticas). Abaixo, algumas imagens:











 Trabalhos de Danilo Bezerra - Desejo de Amazonas.



 Resgate histórico de Lula e do Partido dos Trabalhadores, de Marcela Fleury.

Magma, de João Gonçalves. 







 Ataque às Torres Gêmeas, de Pedro Adário Gonçalves.



Interior do Espaço das Artes na Cidade Universitária.
Fotos: Joviniano Netto (2016-2017).