A exposição Olho-míssil, que (re)inaugurou o Espaço das Artes
(antiga sede do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) foi marcada
por uma série de tendências mundiais no campo das artes plásticas. Num momento
em que a Prefeitura de São Paulo opta por cobrir de cinza diversos grafites
feitos nas ruas da cidade, capital mundial desta modalidade de arte, um dos
artistas da exposição leva para o espaço museológico sua caligrafia, sua força,
sua coleção e seus grafites.
No mais autêntico estilo “bakhtiniano”, Danilo Bezerra expõe
uma complexidade de linguagens dialógicas contemplando distintas visões de
mundo e vozes no campo da arte contemporânea. Resgato o crítico russo Mikhail
Bakhtin para enfatizar que a língua, carregada de ideologias e práticas, sendo
usada pelos povos como materialização de processos físicos, fisiológicos e
psicológicos, deve ser entendida no âmbito das relações sociais. E o que propôs
o artista com as palavras grafitadas, neste contexto, foi um diálogo.
Visitei a exposição várias vezes. Havia lá a história do
Partido dos Trabalhadores colada numa das paredes, esculturas inspiradas em
seres marinhos, vídeos e projeções de brigas políticas e atentado terrorista,
fotografias de realidades cotidianas, gravuras (algumas das quais servindo de
estampa para tecidos nas imagens de pessoas nos metrôs e trens paulistanos) e
grafites. Quase tudo à mostra!
A arte de grafitar existe desde o Império Romano e consiste
em inscrições caligrafadas ou desenhos pintados sobre suportes que normalmente
não são destinados à tal manifestação. Assim, a fachada lateral do Espaço das
Artes foi grafitada com extintores de incêndio carregados de tinta preta,
configurando-se numa ação transgressora. Acompanhei parte do processo e alguma movimentação
que (diga-se de passagem), para um local de conflitos recentes entre estudantes
e polícia militar dentro do campus, arena contra o autoritarismo e a favor de
ocupações de blocos ociosos para residência e permanência estudantil, serviu
para repensarmos novas formas de linguagem que efetivamente sirvam para o
diálogo. Avesso à toda forma de violência na universidade pública, deve haver espaço para todos.
Passada a euforia da noite do vernissage, quando os postes
deram lugar às luzes vermelhas e simultaneamente aconteciam várias festas
dentro da universidade numa movimentação escandalosa (porém, pouco divulgada), não
havia baderna no lugar. O clima favorável daqueles dias deve ter ajudado os
alunos de graduação em artes plásticas a consolidar os encontros com grandes nomes
da arte contemporânea brasileira, com referências da Filosofia e da crítica,
compondo mesas de discussões sobre o panorama da arte e do papel do artista na
sociedade.
Uma imensa quantidade de obras de arte guardadas numa espécie
de parede falsa, com divisórias ocas, foi revelada através de dois buracos
feitos em tais paredes. Embaixo de uma dessas aberturas foi grafitada a palavra
“desejo”. Tratava-se, além de expressão de impacto, de uma valiosa reserva
técnica, com obras de artistas nacionais e internacionais. Muitas sem
assinatura, mas com um adesivo atrás indicando um número em cada uma delas.
Compreendendo a liberdade de expressão plástica, dia após dia
a exposição foi tomando forma e sempre era acrescentado algo novo à instalação
de Danilo Bezerra. Paulatinamente, verificou-se que não era uma instalação
estática. Foram postas uma cadeira de observação elevada (daquelas que
bombeiros usam nas praias), diversas garrafas cheias de água, outras frases e
palavras grafitadas nas paredes, chegando quase próximas ao teto. Havia na
instalação duas grandes telas com o fundo grafitado com a palavra “censurado”.
Na descrição da obra o artista deixa evidente (ou insinua) que o trabalho fora
censurado pela curadoria da exposição.
Acompanhado pela psicóloga e amiga moçambicana Aida Binze, pensei
nas propostas e nos objetos expostos. A cada passo que dávamos refletíamos
sobre os possíveis porquês daquilo. Tudo com valor fundamental da imaginação
criativa. Num instante, movido pela palavra grafitada na parede, retirei do
“buraco do desejo” uma das obras e a coloquei pra fora. Era uma pintura sobre
madeira. Fiz um rabisco sobre um bloco de anotações e a fotografei. No caminho
para o CRUSP (Conjunto Residencial da USP), encontrando duas gavetas velhas num
entulho, já fora do museu, arranquei os fundos de madeira e reproduzi a imagem
com pincel e tinta a óleo. Assinei. Guardei o número (da obra original) e a
obra que fiz para, num possível encontro, presentear o artista da instalação e
chegar a uma síntese da vivência. Afinal, seria o desejo um número censurado?
Noutra ocasião convidei um amigo para ir comigo visitar o
espaço novamente e, para minha surpresa, as duas enormes telas (com o fundo grafitado
“censurado”) que no início da exposição encontravam-se de costas entre os dois
buracos, estavam à mostra de frente e os buracos tampados com elas. Tratava-se
de uma cópia da “Grande Onda de Kanagawa”, do artista japonês Katsushika Hokusai.
Se todo conhecimento se dá de maneira coletiva, não seria diferente no campo da
arte. Estamos sempre inovando, fazendo releituras ou imitando os mestres. O
encanto da pintura (enquanto coisa e ao contrário do grafite) está também no
fato de ela poder ser levada para outros lugares e alcançar outros públicos na
possível mobilidade. E por que não dizer, na posição das obras em relação às
arquiteturas e às outras obras de arte. Ali, a Grande Onda revelada foi, sem
dúvida, o grande destaque da exposição, pois além de bela e muito bem pintada,
era (acima de tudo) uma construção baseada numa obra já existente.
Às vezes não existe a necessidade de conhecer os artistas
pessoalmente, pois as obras falam por si, mas não me contive. Pesquisei uma
fotografia de Danilo Bezerra no Google e o reconheci ao lado do Restaurante
Central da Universidade. Me apresentei e pedi que ele me falasse sobre o seu
trabalho na exposição Olho-míssil. Peguei a pintura que fiz, expus meu processo
de criação (sem me preocupar com juízos de valores, pois, afinal, era resultado
de algo censurado) e dei a obra pra ele. Disse que minha intenção era refletir
e talvez redigir um texto sobre a mostra para um blog. Gentilmente ele me levou
ao Espaço das Artes com o trabalho debaixo do braço. Eu que nunca tive sequer
uma fotografia de minha autoria pendurada na parede (ou pelo menos nunca vi),
estava lá com um dos autores da mostra dentro dos corredores “secretos” do
prédio. Era um mundo encantado cheio de cores, luzes e cheiros (de tinta
fresca). Havia uma rede de dormir e em outras paredes (não visíveis ao público)
do interior do museu, mais grafites. Um dos mais envolventes era a palavra
“índio”. Seguindo a lógica da sensação, me deitei na rede (herança indígena) e
balancei meu corpo. Naquele momento, Danilo retirou da sacola um martelo,
alguns pregos e cravou a pintura sobre a parede onde se encontrava o acervo. Era,
para meu espanto, a única pintura pendurada lá dentro (todas as outras estavam
empilhadas no chão). Talvez ele não tenha percebido a inquietude que senti
naquele momento. Para além de minha ousadia, fiquei feliz por ele ter gostado.
Após fotografar nosso encontro e traçar um perfil de suas
preferências criadoras, entramos no recinto público. Observamos em silêncio o
cenário. Me falou da seriedade de seu trabalho, do que significa toda aquela
linguagem e por fim, fomos embora. A última pergunta que ele me fez foi o que
eu tenho para dizê-lo sobre a Amazônia. Eu respondi que iria pensar. Uma semana
depois de nosso encontro a exposição chegou ao fim e a pergunta ficou sem
resposta. Fascinado pela água, cheguei a divagar sobre a Amazônia em várias
laudas, inspirado apenas naquela instalação. Talvez seja
mais um desejo a cumprir: conhecê-la.
Danilo Bezerra graduou-se em Artes Plásticas pela USP neste
ano. Inacabado, como todos que se propõem a estar na linha de frente da arte
contemporânea brasileira, mas com um caminho promissor e uma coragem incrível
para criar. Os outros expositores, incluindo os da exposição “Pós-poéticas” (pós-graduação)
que aconteceu simultaneamente foram: Alexandre Camanho, Anna Souza, Caio Righi,
Daniel Suarti, Fernando Aidar, Isabella Finholdt, João Gonçalves, Julia
Albuquerque, Juliana Araujo, Lívia Santos, Lola Ramos, Marcela Fleury, Mariana
Utzig, Marina Castro, Marina Zilbersztejn, Paulo Delgado, Pedro Adario, Pedro
Farah, Romeu Mizuguchi, Victor Jenhei (da exposição Olho-míssil) e Ana
Tomimori, Andréa Tavares, Cassia Aranha, Filipe Barrocas, Inês Bonduki, Julia
Mota, Juliano Gouveia dos Santos, Pedro Hamaya, Renato Pera (da exposição Pós-poéticas).
Abaixo, algumas imagens:
Trabalhos de Danilo Bezerra - Desejo de Amazonas.
Resgate histórico de Lula e do Partido dos Trabalhadores, de Marcela Fleury.
Magma, de João Gonçalves.
Ataque às Torres Gêmeas, de Pedro Adário Gonçalves.
Interior do Espaço das Artes na Cidade Universitária.
Fotos: Joviniano Netto (2016-2017).
Fotos: Joviniano Netto (2016-2017).