Uma leitura ampla e múltipla
empreendida pelo imaginário da natureza e de uma paisagem singular nos remete
aos primórdios da civilização humana e da evolução da Terra. Geopoética da
gruta, do morro, da estrada. De início, essencialmente um conhecimento das
manifestações imagéticas de pinturas rupestres – apontando intrínseca relação
que define o homem como ser cultural – e diversos espeleotemas por quase toda a
boca da gruta criam paisagens simbólicas e compõem narrativas visuais das mais
variadas. A importância de lugares sagrados e tão raros se dá aos poucos.
A riqueza que se faz presente num
local situado no município de Iraquara (BA), próximo ao Parque Nacional da
Chapada Diamantina, revela, além das formações espeleológicas e das marcas de
povos primitivos, um importante sítio arqueológico, testemunho mais autêntico
da cultura humana no centro da Bahia. As imagens formam um verdadeiro
quebra-cabeça. Juntas, a paisagem natural cárstica e a arqueologia encontram-se
numa harmonia que se situa tanto no plano simbólico como no plano material,
apontando intrínseca relação entre ocupação humana e grutas.
Vê-se neste (per)curso de
caatinga baiana, além de pequenos muros e cercas de pedra (construídos pelos
escravos no período colonial), formações naturais que propõem alegorias: um
altar, uma multidão, uma formação que sugere a mais moderna das esculturas na
entrada. Que tal, talvez, uma habitação subterrânea com orifícios para a
claridade? Ou ainda, a metáfora de um mundo sensível e inteligível simbolizado
pela sombra e pela luz? Lugar de refúgio ou de esconderijo, o Abrigo Santa
Marta e suas figurações possibilitam permear o pensamento entre a racionalidade
científica da gênese hidrogeoquímica e da vivência topofílica (ou topofóbica)
do contato com a natureza. É caminhando com o olhar que se chega a uma primeira
síntese do patrimônio geológico, espeleológico e arqueológico do local. Para
mim, a experiência é das mais significativas.
De acordo com Beltrão (et al., 1988),
a datação do uso de áreas cársticas na Bahia por grupos pré-históricos coincide
com a de áreas cársticas dos sítios do Parque Nacional da Serra da Capivara,
variando entre 57.000 e 6.500 AP, o que faz com que tais valores (embora não
conclusivos) sejam considerados os mais antigos das Américas. São muitos os
vestígios arqueológicos nas grutas próximas ao Parque Nacional da Chapada
Diamantina, em especial na gruta Abrigo Santa Marta e na Lapa dos Caboclos,
ambas em Iraquara. A pintura rupestre e a arte primitiva, ainda que em parte
decifradas, expressam os valores e as ideias de sociedades extintas. O pintor
pré-histórico usava a cor, o plano, o relevo e os movimentos nas suas pinturas,
evoluindo nos estilos que vão do realismo figurativo à geometria das formas. As
pinturas rupestres se destacam em todo levantamento espeleológico devido ao
apelo visual e por mostrar ocupações pretéritas.
Nesse panorama, a sensibilidade
da imaginação deve ser aguçada. Pergunto a um morador da região sobre o que ele
acha da gruta mais próxima e para meu espanto ele não a conhece. “Escuto
histórias, causos” que envolvem as representações pictóricas e o imaginário
coletivo, me responde. Mas tem, antes de tudo, “um pouco de medo”. De fato, muitos
são os aspectos fantasmagóricos na gruta. Basta um pouco de fantasia no
pensamento. Pouco distante dali, no município de Morro do Chapéu (BA), vivia
até a década de 1970, cerca de vinte famílias nas grutas areníticas, sendo que
uma delas era destinada aos rituais de sacrifícios de pessoas que eram
aprisionadas nas redondezas. Diante da prática medonha, a comunidade foi
dispersa pela polícia e os líderes levados ao manicômio de Salvador, como
relata Marechal Rondon (LINO, 1989).
O ar dentro da gruta é puro; a
temperatura, a depender da menor ou maior intensidade de circulação do ar, tem
caráter dinâmico. Encontram-se morcegos, conchas de caramujos da família
Strophochelidae outrora carreadas pelas águas, ossadas de fauna acidental e
troglóxenos (animais que, apesar de serem encontrados de forma regular nas
cavernas, não são exclusivamente destes locais). Gota d’água por gota d’água,
há milhares de anos, as paisagens cársticas e o relevo que envolvem grutas e
cavernas são moldados. A marcação do tempo geológico não se dá por relógios.
Num universo como o das cavidades
naturais, onde cada centímetro de formação espeleológica pode ter levado
centenas de anos para existir, o tempo é amplo e quase infinito. Há variedade
de aspectos morfológicos no Abrigo Santa Marta, a saber: paredes rochosas,
fendas, estalactites e estalagmites, solo arenoso e argiloso, acúmulo de
detritos orgânicos, guano de morcegos, represas secas de travertinos (que
formavam pequenos lagos) e centenas de pinturas rupestres, incluindo formas humanas
e zoomórficas, desenhos de círculos, de uma roda e de um sol voltados para o
leste, peixes, répteis e mamíferos. Tanto fora como dentro da gruta, pequenas
marmitas de erosão, morrotes areníticos erodidos e lapiás alveolares que
lembram pilões. A parede calcária com pequenos buracos serve de morada para
pássaros, morcegos, aranhas e opiliões. Um ecossistema perfeito, intocado,
protegido por lei e pelos moradores locais.
Quase sempre permeia nas cavernas
uma relação dialética entre bem e mal, dia e noite, sagrado e profano. Nas
profundezas espeleológicas, a insuportável beleza das “estátuas” e flores de
pedra, cortinas e colunas, é, para muitos, prova irrefutável da existência de
um ser onipotente. Para outros, a perfeição do trabalho artesão diabólico ou
mera ação da natureza. O fato é que, independentemente de explicação, a beleza
comove em suas variadas formas e nos convida à exploração consciente. O enfoque
fenomenológico pode trazer elementos para análises amplas de paisagens
cavernícolas permeando racionalismos técnicos, científicos e econômicos e
exercitando subjetividades na busca por um mundo melhor.
As questões que envolvem grutas e
cavernas são controversas. Se por um lado se observam problemas de degradação
e/ou atividades desorganizadas em algumas, por outro, vê-se a possibilidade de
elaboração de plano de manejo espeleológico e de capacitação de agentes capazes
de monitorar as atividades de visitação e preservação. Um plano de ação voltado
ao turismo em sítios arqueológicos, grutas e cavernas necessita abranger
diretamente todos os segmentos da atividade de modo participativo, como por
exemplo, população local, turistas, professores, pesquisadores, guias
especializados e demais atores sociais.
Considera-se a percepção humana
como um pré-requisito para a obtenção de diferentes níveis de conscientização
ambiental. Atuando em conjunto com os conhecimentos populares e científicos,
sabe-se que esses elementos mostram forte potencial para que se promova a
conservação da natureza. Como atividade consciente, o turismo é uma forma usada
por visitantes de áreas especiais e protegidas, permitindo a percepção do
ambiente e, desta maneira, a interpretação das áreas. Em maior ou menor
intensidade, a interpretação gerada pela percepção ambiental é fator determinante
no nível de conscientização dos visitantes, podendo alargar os horizontes e
reduzir o nível de impactos negativos dentro de grutas e cavernas (HANAI; SILVA
NETTO, 2005).
O Abrigo Santa Marta ainda não é
aberto à visitação pública. Não por acaso, para que ocorram atividades
turísticas é necessário muito planejamento, sendo também fundamental que
aconteçam atividades de educação ambiental desenvolvidas no contexto do
ecoturismo e do espeleoturismo. As práticas educativas devem focar nas
propostas ligadas à questão do pertencimento. Um público bem específico se interessa
por esse tipo de turismo. Entretanto, de antemão, deve-se reconhecer que grandes
quantidades de pessoas ou grupos pequenos de visitantes (por ventura)
insensíveis e com dificuldades de abandonar os hábitos urbanos (ou pelo menos
não levá-los para a natureza) podem danificar os aspectos sobre o qual se
sustenta o patrimônio espeleológico e arqueológico, tais como: formações
espeleológicas, vegetação circundante, fauna e o inestimável testemunho espiritual
de ancestrais representado pelas pinturas rupestres. Por isso, faz-se
necessário ampliar a consciência da importância desse tipo de patrimônio
continuamente, criando instrumentos educacionais e técnicos que sirvam efetivamente
para a sua conservação.
REFERÊNCIAS
BELTRÃO, M. C. M. C.; DANON, J.
A.; DORIA, F. A. M. A. Datação absoluta
mais antiga para a presença humana na América. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.
HANAI, F. Y.; SILVA NETTO, J. P. Percepção e conscientização ambientais: alternativas para a preservação das cavidades naturais do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR). In: Simpósio Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente. Anais... Londrina: UEL, 2005.
LINO, C. F. Cavernas: o fascinante Brasil subterrâneo. São Paulo: Editora Rios,
1989.
Muro de pedras próximo ao Abrigo Santa Marta, construído no período colonial.
Parede calcária do Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Pórtico da gruta Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Pórtico da gruta Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Aspecto interno do Abrigo Santa Marta. Estalactites.
Coluna. Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Travertino, estalactite e estalagmite no interior do Abrigo Santa Marta.
Conchas de caramujos da família Strophochelidae outrora carreadas pelas águas.
Joviniano Netto. Foto: Alex Rocha (2017).
Aspecto da parede calcária com destaque para algumas pinturas rupestres (bovídeos).
Zoomorfos, grafismos e formas geométricas. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Zoomorfos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Zoomorfos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Zoomorfos e grafismos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Zoomorfos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Aspecto da parede calcária com destaque para algumas pinturas rupestres (grafismos).
Grafismos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Zoomorfos, grafismos e mãos. Pinturas rupestres, Abrigo Santa Marta, Iraquara (Bahia).
Paisagens do Vale do Capão, Chapada Diamantina (Bahia).
Fotos: Joviniano Netto. 24.08.2017.
Joviniano Netto. Foto: Alex Rocha (2017).