Há exatamente um ano eu
tive a ideia de produzir um trabalho artístico na Universidade de São Paulo,
com matéria-prima encontrada na região onde nasci e fui criado. Região da caatinga nordestina (existe também a caatinga amazônica, diferente da nossa).
Em minha penúltima temporada em Tanhaçu, município situado no interior da Bahia
completamente inserido no bioma da caatinga, coletei de diversos mandacarus,
sustentavelmente, cerca de mil espinhos de quinze a vinte centímetros de
comprimento, muitos completamente secos, para criar algumas obras de arte, registrar e
chamar a atenção, de alguma forma, para os riscos que este bioma exclusivamente
brasileiro sofre. Riscos de extinção.
Eu já havia feito
algumas esculturas, também designadas “desobjetos”, em 2010, como podem ser
verificadas em fotografias no meu perfil do flickr
(http://flickr.com/joviniano). Naquelas esculturas, usei água de rios que
passam pelo município, terra do local, cascas de ovos de codorna e cera de
abelhas nativas entre as partes. Dei o título de “Retorno às Origens”. Fiz tudo
no Estado de São Paulo e cheguei a cadastrar as obras no I Concurso Itamaraty
de Arte Contemporânea, em 2011, sem sucesso. O mais bacana é que renomados professores
de escolas tradicionais francesas de arte contemporânea e moderna comentaram
sobre as obras e me cumprimentaram pela originalidade dos trabalhos. O que muito me incentivou a
prosseguir com a ideia dos “desobjetos”. Eu criei várias esculturas depois, mas
as obras desapareceram, pois é mais importante para as pessoas do meu convívio
íntimo, terem um copo para tomar café, por exemplo, do que algo estético para apreciar,
sem nenhuma utilidade, feito com tal copo.
Quatro anos depois de
criar a primeira escultura com cactos, copos e taças, conheci um trabalho de
Denise Milan e Ary Perez no antigo Museu de Arte Contemporânea da USP, hoje
chamado “Espaço das Artes”. É uma obra exposta permanentemente e eu a conheci
de perto, chegando inclusive a coletar um pouco daquela água e a recomendar que
a administração do MAC fique de olho na obra devido às larvas de mosquitos
que identifiquei (e registrei). Eu morava no quinto andar do Bloco G do
Conjunto Residencial da Universidade e todos os dias, ao abrir a porta do
apartamento para sair, dava de cara com tal obra. Tenho a impressão de que
pouca gente a percebe. Ela se chama “Um Furo no Espaço” e é composta
basicamente pelos mesmos materiais que compõem as minhas pequenas esculturas: cacto, rocha,
mineral (quartzo) e água (no meu caso, incluo copos de cristal, vidro e aço). É um trabalho
belíssimo “O Furo no Espaço”, cheio de significados, como a própria autora me
explicou entusiasmada num comentário pelo Instagram.
Joviniano Netto. “Um Furo no Espaço”, de Denise Milan e Ary Perez.
Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Foto: Rafael Silva Gargano (2018).
Denise Milan expôs na
última Bienal de Arte de São Paulo e é um dos grandes nomes da arte
contemporânea do Brasil na atualidade. Acabou se tornando, também, uma
referência para os meus trabalhos. Eu não vendi as minhas esculturas porque, em
muitas delas, uso líticos pré-históricos encontrados na Chapada Diamantina e
isto configuraria crime de usurpação da União, mas não me faltaram propostas no
mercado negro de obras de arte. Propostas boas, inclusive. Penso que o artista precisa vender seus trabalhos, mas necessita ser responsável pelo que faz, assim como o
cientista que escreve um texto acadêmico. É importantíssimo preservar a autoria da
obra, ainda que ela seja desmontada ou destruída por quem não tem a
sensibilidade para apreciar. No meu caso, às vezes, percebi que as pessoas estavam interessadas apenas nos líticos pré-históricos.
Até a Renascença não
havia diferença clara entre ciência e arte. Naquele tempo, o ideal de homem
universal era o que unia ambos os campos do conhecimento. Hoje, tenho a
impressão de que há muita diferença entre uma coisa e outra. Tudo é uma
construção. Fruto de uma construção mental e do trabalho. Eu sou mestre e faço doutorado em ciências
e, assim, venho percebendo que há um tipo de apartheid intelectual diante das
inúmeras especialidades dentro da Universidade de São Paulo. Infelizmente, as estruturas
educacionais reforçam essa separação, em vez de extingui-las. Isto dentro da universidade
onde, como o próprio nome diz, deveria ser local da universalização da cultura,
da ciência, da filosofia, da arte e dos saberes.
A palavra “mandacaru”
vem do tupi e significa, numa tradução literal, “espinhos danosos agrupados”. E
é justamente este o nome que dei para a série de meus trabalhos recentes
envolvendo espinhos desta planta da caatinga. Num dos trabalhos perfurei uma
tela de linho de trás para frente com os espinhos; noutro, os agrupei e juntei as pontas
formando um bastão; e na última, coloquei cerca de um quilo de areia (também da
Chapada Diamantina) sobre uma placa de vidro, pondo um lítico pré-histórico
sobre a areia e alguns espinhos voltados para cima, como mostrado no vídeo ao
final deste texto.
Diante de alguns
incidentes que aconteceram comigo no Conjunto Residencial da Universidade de
São Paulo, onde tive algumas de minhas obras destruídas por um morador
desequilibrado e aparentemente doente da cabeça, viciado em drogas, como também
posso comprovar em vídeos dele mesmo falando, eu precisei sair às pressas do
campus numa certa manhã, pois recebi até ameaças de morte por parte de algumas
pessoas sem caráter e mal-agradecidas que ajudei. Foi triste, mas não me
arrependo de ter feito a caridade, pois estou com minha consciência tranquila
e, para além do passado traumático, encontro-me novamente no meu lugar de
origem, trabalhando muito e desenvolvendo a criatividade na Chapada Diamantina.
Tudo foi relatado em ofícios na Superintendência de Assistência Social da USP e
em publicações enviadas diretamente para a Reitoria da Universidade de São
Paulo. Privilégio para poucos o meu estar aqui e, a cada dia, surge um novo trabalho que
me enche de alegria. A arte para mim é uma alegria de viver.
Uma questão que sempre me
pego pensando, inclusive quando eu produzo algo, é “para que servem as coisas?".
A arte deve ter uma utilidade além da especulação financeira e apreciação
estética. Não foi diferente com a última obra que criei (a composta por placa
de vidro, areia, lítico pré-histórico e espinhos de mandacaru). A criei e, no
dia seguinte, depois de fotografar e filmá-la amplamente, juntei metade dos
espinhos coletados aqui na região da Chapada Diamantina, coloquei a areia e o
lítico dentro de uma caixa preta e fui em direção ao Instituto de Geociências
para doar a peça arqueológica. Só que, com um detalhe: para
cada passo que dava, durante todo o trajeto, eu deixava cair no chão alguns espinhos, como na famosa
história de João e Maria, em que o menino, tido como um tolo, joga migalhas de pão pelos caminhos da floresta. Aquela experiência foi incrível
para mim. Indescritível. E arte, no meu caso, serve antes de tudo,
para mim mesmo.
Eu já tinha uma pessoa
em mente e, por sorte, a encontrei na biblioteca do Instituto. É uma mulher que
ama o campo de geociências e trabalha há muitas décadas na biblioteca, sendo a funcionária mais antiga do Instituto de Geociências. Para a minha felicidade, ela ficou muito alegre e tenho certeza que
parte da nossa história aqui da Bahia, da Chapada Diamantina, está em boas mãos
agora. Dentro da Universidade de São Paulo com uma excelente guardiã de livros
e do maior acervo de geociências do Brasil.
Este é um relato sobre
uma série artística que construí e desconstruí. Não tenho nenhuma intenção em
expor meus trabalhos artísticos para o público, haja vista que, no
Brasil, novos artistas não têm vez. A arte, em muitos casos, precisa ficar
oculta. É o caso das minhas esculturas e desobjetos. Dos meus desenhos e das
minhas pinturas. Guardados a sete chaves, pois é o testemunho espiritual de
quem produz. É o meu testemunho espiritual. Lembro que durante a pós-graduação em São Carlos
já chegaram a dizer que meus trabalhos eram frutos de bruxaria. Quando eu
morava sozinho, preparava festas para meus amigos no intuito de mostrar meus
trabalhos a eles. Eu adorava! De fato, eu sou um bruxo. Eu
estudo. A minha visão de bruxaria é pautada na beleza e no encanto. E o conhecimento vem com estudos. Espero
que vocês tenham gostado do texto e, acaso se inspirem, produzam algo também. É
assim que nascem os artistas! E a arte, antes de tudo, elucida.
Chapada
Diamantina, Outono de 2019.
Vídeos: Joviniano Netto (2019).