segunda-feira, 23 de maio de 2016

Jac Leirner: um ser de sensação

Jac Leirner é uma artista paulista contemporânea. Escultora, desenhista, pintora, possui trabalhos em acervos de importantes museus, como, por exemplo, no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), no Tate Londres, no Guggenheim, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, dentre outros, representando um dos grandes nomes da arte brasileira e internacional de nosso tempo.
Entre as exposições que participou destacam-se a Bienal de São Paulo, a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza, a Bienal de Havana e a Bienal do MERCOSUL. Merecido o reconhecimento da Associação Paulista de Críticos de Arte, que lhe concebeu o prêmio de melhor exposição do ano em 2012, Jac Leirner é, com todo mérito da frase, “um ser de sensação”. A síntese abaixo é baseada em sua apresentação durante o Ciclo de Debates de Arte Contemporânea realizado em 23 de maio de 2016 pelos alunos de graduação em Artes Plásticas da Universidade de São Paulo.

Desde que Jac Leirner iniciou seus estudos em Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) em 1979, seu trabalho passou por diversos desdobramentos. Um caráter fundamental em sua obra reside no uso das cores. As misturas de tintas e pigmentos que dão origem às variadas tonalidades, tanto nas aquarelas como nas instalações, são uma característica presente em seu trabalho. É visível a influência de Paul Klee nas aquarelas e composições sobre papel. A necessidade de fazer a série de desenhos adquirir espaço fez com que sua obra extrapolasse o plano bidimensional em direção à tridimensionalidade. Tem-se aí, então, a feliz materialidade de seus trabalhos e dos aspectos constitutivos auxiliando a construção da narrativa contemporânea que torna o pensamento, quase banal, palpável. Em outras palavras, os materiais e as medidas passam a se destacar. Os chamados “objetos-parede” sugerem a ideia de algo inacabado, e por que não dizer, sem fim...
A artista usa materiais diversos, acessíveis a todos, na composição de suas obras. Couro, feltro, borracha, espuma, alumínio, lona, papelão. Tudo isso é matéria-prima valiosa, mas talvez vulgar demais para ser perceptível no dia-a-dia e transformada em obras de arte. E é justamente o que ela faz: aponta essa riqueza. Por mais que seu trabalho seja dado como acabado, ainda que leve quinze ou trinta anos, a noção de infinito está presente em muitas obras.
Fumante por muito tempo, Jac Leirner abandonou o vício após seu filho pedir de presente de aniversário que ela deixasse de fumar. Escutei ela dizer isto numa conversa antes de iniciar a apresentação. Foram 1200 maços de cigarro fumados num período de aproximadamente três anos, guardados e posteriormente transformados em arte. Simbolicamente isso reflete a realidade de muitos. E ela não parou por aí. Colecionadora, juntou sacolas plásticas de museus de diversas partes do mundo e cédulas de dinheiro grafitadas, já sem valor de troca, transformando-as numa lógica organizacional surpreendente. No que se refere às produções com cédulas, cabe destacar o panorama de um período de alta inflação no Brasil vivenciado por ela. As composições se deram tanto por meio de um projeto que privilegiava os aspectos cromáticos das notas como por meio dos temas grafitados por anônimos em tais cédulas. As notas grafitadas eram separadas e agrupadas por temas.
Além da estética, é forte o peso simbólico de seu trabalho. Existe uma ligação entre arte e vida na obra de Jac Leirner. Esclarece ela que todas as áreas do conhecimento requerem uma sequência e um desdobramento. Surgem colagens com arames, fios, papeis e outros materiais que evidenciam uma produção construtivista, revelando a importância de cada coisa a partir do tamanho.
Algumas séries foram influenciadas por alguns de seus professores durante o curso de Artes Plásticas na FAAP. Como bolsista, foi monitora em disciplinas acadêmicas. A Fundação oferecia equipamentos de qualidade e no contexto artístico, desde o início, obteve grandes interlocutores. A motivação era de cunho subjetivo. Furtava parafernália de companhias aéreas, como, por exemplo, cinzeiros, e dispunha isso em museus. Cartões de visita de pessoas do universo da arte foram colocados na parede e transformados em obra. A noção de organização desta artista é excelente na construção metalinguística.
Jac Leirner expõe seu processo criativo até chegar à coisa em si. Reclama da ausência de crítica durante uma de suas exposições e sem perceber, motiva a elaboração deste texto. Um pouco constrangida, como ela mesma disse, constrói signos ligados às drogas como cocaína e maconha. Um coração moldado em cocaína aqui, uma caveira ali, sempre ao lado de outro objeto servindo como escala. Fotografa e transpõe as imagens para um catálogo de galeria. Intemporal e às vezes autobiográfico, mostra dezenas dessas fotografias e destaca num comentário convicto que agora ela é uma pintora. Uma “pintora medíocre”, complementa. Porém, nos apresenta o que há de melhor em sua pintura e não convence.
Transforma seu trabalho num lugar. O lugar da poesia; o lugar do espírito. E quando questionada sobre sua definição de “espírito” não nos dá uma resposta objetiva. Pois bem, quem acompanhou o evento talvez tenha saído de lá sabendo, mas não custa acrescentar: espírito é a força que nos faz levantar da cama de manhã e enfrentar a vida. Espírito é essa mesma força que transforma nossos atos em testemunho no mundo. Espírito, Jac Leirner, é também o seu trabalho materializado com tanta franqueza e originalidade. É o que nos faz mirar o outro depois de um encontro e dizer: “foi um prazer!”.
São Paulo, CRUSP, 23 de maio de 2016.