terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Conteúdo deste blog e o maior reconhecimento de 2023

Sinto-me honrado e feliz com a declaração pública nas redes sociais que recebi do Embaixador das Artes e da Cultura da Academia de Letras do Brasil/Suíça, e artista plástico mundialmente reconhecido Ed Ribeiro.



terça-feira, 24 de outubro de 2023

A Geografia dos Alimentos no norte do Paraná: influências estrangeiras

 Resumo

Desde sua fundação, Londrina foi colonizada por muitas etnias, fazendo com que os hábitos alimentares de seus habitantes fossem se tornando bastante diversificados. Sua cultura alimentar foi moldada inicialmente a partir dos recursos nativos disponíveis e plantados, bem como dos produtos vendidos em lojas de “secos e molhados”. A evolução dos processos que fizeram Londrina tornar-se um centro gastronômico passou por várias etapas, sendo evidentes as contribuições dos árabes e japoneses. Expor essas influências é o objetivo central do presente trabalho.

Palavras-chave: Geografia da Alimentação; restaurantes; árabes; japoneses.

 

Abstract

 

Introdução

Sabe-se que a região onde se encontra Londrina, há cerca de setenta anos, havia uma rica e densa floresta tropical latifoliada, constituindo-se então nessa época num proveitoso negócio imobiliário realizado principalmente pela Companhia de Terras do Norte do Paraná, empresa de origem inglesa – Paraná Plantation Co. – mais tarde substituída por um grupo de negociantes paulistas (MOMBEIG, 1957. pp.116/122), contribuindo para o início de uma aglomeração que necessitava suprir suas necessidades alimentares diárias para transformar a paisagem e o meio até então inexplorado, ou pouco explorado.

Muito se tem conhecimento sobre esse processo de povoamento da região, mas embora nos museus e demais centros de pesquisa de Londrina haja vasto material bibliográfico e iconográfico sobre este processo, pouco se sabe sobre a dinâmica dos hábitos alimentares e sobre o quanto as cerca de trinta e duas etnias influenciaram para o que se percebe hoje na cidade: uma considerável quantidade de restaurantes típicos que coincidente ou não, alguns dos mais tradicionais foram fundados à época da colonização e urbanização de Londrina.

Na medida em que a mata era desbravada, eram encontradas matérias-primas que poderiam ser utilizadas como alimentos. É o caso do palmito e dos porcos selvagens, os catetos. Mas como vieram pessoas de várias regiões brasileiras e de outros países (neste caso, muitas vezes vindas de outros Estados numa segunda tentativa de “fazer a América”) com hábitos diferentes das populações tradicionais (índios e demais habitantes), viam-se obrigadas a suprir suas necessidades alimentares tendo que comprar produtos nas vendas e empórios da cidade – as chamadas “lojas de secos e molhados”, sem no entanto, deixar de aproveitar as iguarias que a mata dispunha, especialmente na ausência dos ingredientes habituais (AYRES, 2005; BISOGNIN, 2005; BRUGIN, 2005; SCHWARTZ, 2005).

O projeto teve como objetivos gerais a caracterização e contextualização dos hábitos alimentares da população de Londrina, buscando como objetivo específico, a sistematização dos dados obtidos. Pela amplitude no campo de pesquisa nessa área ainda pouco explorada na região, optou-se em analisar com mais detalhes os hábitos e influências alimentares dos árabes e dos japoneses que vivem em Londrina e acompanharam a evolução da cidade, buscando dessa forma uma maior especificação do tema tratado.

 

Considerações sobre a alimentação humana através dos tempos

 

A influência de diversos fatores físicos ou geográficos faz-se sentir na pesquisa da história da alimentação de grupos humanos em todo o mundo. A época em que o homem teve origem, bem como as etapas de sua evolução têm sido investigadas por diferentes campos do saber. Um exemplo é a paleontologia que por meio da análise de fósseis evidencia uma evolução gradativa de experiências em que se fundamentam nossos conhecimentos e muitas preferências alimentares (ORNELLAS, 2003).

Sabe-se que a alimentação do homem tem se baseado em um conjunto de espécies vegetais e animais e em técnicas de cultivo e culinárias. Esse conjunto representa o ponto de equilíbrio entre os recursos disponíveis, a capacidade produtiva do ambiente e o nível de desenvolvimento cultural e tecnológico num dado momento (KHATOUNIAN, 1994).

No decorrer dos diversos períodos da evolução humana, foram desenvolvidas técnicas especializadas a partir da fabricação de utensílios de pedra, de metal e também, no aprimoramento das maneiras de transformar os alimentos. Quando o homem deixou a vida nômade para viver em pequenas aldeias, aprendeu a domesticar animais, a cultivar plantas e a preparar seu próprio alimento, iniciando-se então na vida pastoril e cultivando a terra. Dispunha de carne, leite – de onde obtinha manteiga, coalhada e queijos – e de lã (obtida por meio da criação de ovelhas) para tecer agasalhos e, possuindo uma maneira de assegurar-lhe o sustento através da vida sedentária passou a desenvolver o dom artístico, como mostram com grande maestria, desenhos encontrados em cavernas calcáreas em várias partes do Planeta. O desenvolvimento da inteligência proporcionou ao homo faber a criação de artesanatos e com isso, novas formas de guardar e conservar os alimentos. Moldando barro e endurecendo-o na brasa, foram feitos vasilhames que serviam para cozinhar leguminosas e cereais, fazendo papas e iniciando-se na culinária. A farinha surgiu a partir da trituração – entre duas pedras – dos grãos que, misturados com outros ingredientes deram origem ao pão (ORNELLAS, 2003).

A partir dessa e de outras tantas evoluções ocorridas, as sociedades das mais variadas partes do Globo desenvolveram culinárias próprias levando-se em conta os recursos disponíveis no ambiente e aqueles introduzidos, sendo muitas vezes, identificadas fortemente pela história dos pratos locais e regionais ou, como no caso de alguns grandes centros urbanos, pela concentração de restaurantes típicos que buscam representar as culturas de várias localidades.

O Brasil e sua rica história alimentar

Na maior parte do território brasileiro, a mandioca era a base alimentar dos nativos, tornando-se também o prato diário dos novos habitantes que estabeleceram os primeiros núcleos afro-europeus de povoamento no País. A razão dessa supremacia pode ser verificada numa carta datada de 17 de outubro de 1781, enviada por José da Silva Lisboa, mais tarde Barão de Visconde de Cairu, a Domingos Vandelli, professor da Universidade de Coimbra (apud AGUIAR, 1982, p.64): 

[...] cada preto sem dificuldade prepara e planta todos os dias 100 covas de mandioca, qualquer terra a mais medíocre produz 20 alqueires por mil covas. Dois pretos que trabalhassem juntos teriam feito em 10 dias planta para 40 alqueires; em outros 10 dias teriam colhido e preparado a farinha com o trabalho reunido. El-Rei dá aos seus soldados uma quarta de farinha cada 10 dias; desse modo os ditos pretos consumiriam por ano 20 alqueires e lhes restava ainda outros 20 para venderem, tudo fruto do trabalho de 20 dias. Não é fácil achar país, onde com 20 dias de trabalho, se tenha pão para todo o ano, e ainda alguma coisa de mais.

As primeiras tentativas de adaptar alimentos europeus tiveram seu desempenho ligado às condições climáticas e edáficas. Embora atacado pela ferrugem, o trigo foi plantado no Brasil. Anchieta menciona belos trigais no planalto de Piratininga. Três séculos mais tarde, Saint-Hilaire (apud TEIXEIRA, 1958 p.27-28) se referia a uma propriedade visitada em Minas Gerais da seguinte maneira: “... o agricultor cultivava ao mesmo tempo milho, feijão, cana-de-açúcar, café, algodão, mamona e trigo.” Dessa forma, a pouca importância do trigo na alimentação dos brasileiros ao longo da história provavelmente se deva mais ao melhor desempenho biológico de outras culturas do que à impossibilidade de produzi-lo.

Durante o ciclo da mineração, especialmente na região das Minas Gerais, a mandioca foi perdendo terreno para o milho. A concentração do trabalho na lavra do ouro obrigava a aquisição de alimentos produzidos à distância, transportados em condições precárias pelas tropas de mulas. A farinha de mandioca, mais suscetível à deterioração que os grãos de milho foi, por esse motivo, gradativamente substituída pelo angu de fubá e pela farinha de milho. Pela mesma razão, o feijão, de importância secundária no nordeste açucareiro, começou a se tornar mais presente. Vários viajantes descreveram nessa época a alimentação dos tropeiros, cujos elementos básicos (milho, feijão e toucinho) deram o matiz da mesa da vasta região do Brasil dinamizada pelo tropeirismo, do Rio Grande do Sul às Minas Gerais (KHATOUNIAN, 1994).

Durante o período colonial o arroz, trazido da Índia pelos portugueses, era escasso e seu consumo restringia-se a ocasiões especiais. O cultivo dessa cultura era mais exigente em trabalho do que o da mandioca ou o binômio milho-feijão, e foi implantado lentamente. Acredita-se que o que tem contribuído para sua expansão foi a vinda da família real para o Brasil, inaugurando um novo modo de consumo. Também deve ter sido relevante a sua tolerância à acidez e baixa fertilidade dos solos. Os roçados próximos das cidades produziam boas safras de arroz mesmo após exaurida a fertilidade natural da mata pelo cultivo incorporado ao cotidiano de boa parte do Brasil, formando com o milho, o feijão e a mandioca, a base alimentar do país (KHATOUNIAN, 1994), sendo que esses quatro produtos não participam com igual intensidade na alimentação das diferentes regiões do país.

No estudo da alimentação das populações brasileiras são comprovadas diferenças acentuadas e fundamentais, levando-se em conta os hábitos alimentares das classes abastadas e das classes pobres, bem como a alimentação de diversas áreas e regiões do país. Do ponto de vista geográfico-cultural, o Brasil pode ser dividido em algumas regiões alimentares elaboradas por estudiosos, dentre as quais se destacam as de Alfredo Antônio de Andrade, Josué de Castro, Rui Coutinho, A. J. de Sampaio, e Sálvio de Mendonça.

Por tratar exclusivamente dos aspectos culturais, optou-se no presente trabalho expor resumidamente a divisão proposta por Sampaio (1944), buscando dividir o Brasil em regiões naturais; zonas de simples aclimatação; e zonas agrícolas (apud SILVA, 1964) descritas a seguir. Pode-se observar nas classificações a estreita vinculação entre os recursos naturais e a base alimentar das regiões.

 

Regiões naturais – Alimentos autóctones

 

·                   Região da castanha, peixes, quelônios, frutas silvestres: Amazônia;

·                   Região do babaçu: Piauí, Maranhão, norte de Goiás e nordeste de Rondônia;

·                   Região do pequi: sertões semi-secos de Minas Gerais;

·                   Região do pinhão e do mate: Paraná, Santa Catarina;

·                   Regiões das pescas marítima, fluvial e lacustre, como fonte principal ou única: litoral e interior, exceto a Amazônia;

·                   Regiões de salinas: Cabo Frio, Mossoró;

·                   Regiões pouco providas ou desprovidas: zonas de mineração, campos gerais, campinas secas do Nordeste, região de sal de barreiro.

 

Zonas de simples aclimatação: rústica

 

Zona de carne e leite de cabra: sertões nordestinos (em vias de transformação graças a criação de açudes, poços e irrigação);

Zonas litorâneas do coco e respectivas fazendas: de Abrolhos ao Maranhão e uma disjunção ao sul;

 Zona do dendê: algumas localidades da Bahia.


Zonas agrícolas

 

Zonas do churrasco: Rio Branco, Marajó, Pantanal, Goiás e Rio Grande do Sul;

 Zonas da carne de porco, toucinho, fubá, leite e feijão: Minas Gerais;

Zonas de leite (de produção em larga escala): Minas Gerais;

Zonas de café: Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo;

Zona do açúcar: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Sergipe, Alagoas e Pernambuco;

Zona do cacau: sul da Bahia;

Zona de cereais: arroz, feijão, milho, trigo etc. e numerosas disjunções;

Zona de laranjais: Limeira, SP, Rio de Janeiro, Bahia etc.;

Zonas frutíferas mistas: São Paulo (regiões de altitudes);

Zonas de bananais: Santos, Rio de Janeiro;

Zonas vinícolas: Estados do Sul e altitudes.


Breve histórico da influência estrangeira em Londrina

 

A grande influência de diferentes culturas que colonizaram a região de Londrina é um dos pilares no qual a Geografia da Alimentação neste trabalho se baseia. A historiografia londrinense da alimentação é muito pobre, e por meio de entrevistas com pessoas que vivem na região e acompanharam as principais mudanças em seu desenvolvimento podemos preencher a lacuna sobre a alimentação dos “pés-vermelhos” na época em estudo. Um artigo recente vem tratando do assunto reunindo os elementos básicos para a estruturação desse perfil (CARVALHO, 2005-a).

Há cerca de setenta anos, a cidade de Londrina resumia-se a um amontoado de ranchos. Na medida em que a mata fechada ia sendo destruída para dar lugar às imensas lavouras de café e lavoura branca eram encontradas matérias-primas que serviam de base alimentar para os peões que trabalhavam sem parar, bem como para imigrantes de várias nacionalidades (SCHWARTZ, 2005).

A adaptação dos grupos de estrangeiros como, italianos, alemães, japoneses, portugueses, árabes e nacionais como, paulistas, mineiros, baianos, cearenses e capixabas que migraram para o norte do Paraná ao meio geográfico desta região, fez com que surgissem diferentes modos de vida (depredatórios do ponto de vista da natureza), gerando riqueza e desenvolvimento (posteriormente), inclusive cultural.

Faz-se necessário ressaltar que o processo de ocupação de Londrina está intimamente ligado ao Estado de São Paulo na medida em que muitos desses grupos étnicos vieram desse Estado numa segunda tentativa de desbravar a terra e "fazer a América". Outros grupos de imigrantes vieram diretamente de seus países de origem. Nesse processo ocupacional os produtos da colheita, caça e pesca eram muito utilizados no suprimento alimentar.

Havia na região vários locais designados de “Armazém de Secos e Molhados”, sendo encontrados em documentos da época, propagandas que chamavam a atenção dos consumidores pela criatividade e promessa de melhores preços dos produtos. Como exemplo, podem ser citado:

“Armazem de Seccos e Molhados – Productos coloniaes em geral/ Tecidos e Armarinho, de propriedade de David Dequêch, e localizado na Avenida Paraná, 332 em Londrina”; “Casa Mercurio – Seccos e Molhados/ conservas, bebidas, ferragens. A Casa mais antiga na praça, de propriedade de Fr. Schultheiss, e localizado na Avenida Paraná, 387 em Londrina”; “Casa Azul – Seccos e Molhados/ louças, ferragens e armarinhos. De propriedade de Z. Iwarura, e localizado próximo a E. F. S. Paulo Paraná, em Rolândia (PARANÁ NORTE, 1935, 1936).

Os alimentos utilizados, o modo de consumo e suas técnicas de preparo resultaram da combinação entre os elementos citados acima, as possibilidades de produção do meio físico da região (com solo fértil e clima favorável) e a herança cultural das etnias que se mudaram para Londrina.

O palmito era um recurso abundante  encontrado na mata da região, sendo consumido de várias maneiras, a depender da imaginação das mulheres em criar receitas para o produto. Comia-se palmito assado, refogado, cozido em salmoura, in natura e mais raramente, como recheio de tortas, já que os carregamentos de farinha não supriam a demanda da época (SECRETARIA ESPECIAL DA MULHER, 1999; AYRES, 2005).

Muitas são as culinárias que transformaram Londrina num importante centro gastronômico do norte paranaense na atualidade. Em entrevista à primeira aluna do Colégio Mãe de Deus, Alice Brugin descreveu com uma impressionante riqueza de detalhes o cotidiano alimentar de sua família que apesar de ser italiana, saboreava os pratos brasileiros sem deixar de preparar as massas, o salame, os molhos e a carne de porco da maneira como eram feitos na terra natal.

 

Árabes e japoneses em Londrina: originalidade e adaptações na dieta cotidiana

 

O primeiro restaurante árabe de Londrina foi fundado no ano de 1965. Criado por uma família de origem libanesa, os hábitos eram seguidos à regra até que, para agradar por completo o gosto da clientela e de parte da família, foi adicionada ao cardápio a feijoada nas segundas-feiras e sábados, sendo servidos ocasionalmente feijão e arroz (IZAR, 2005).

A idéia inicial de inaugurar um restaurante de comida árabe em Londrina surgiu a partir de um almoço com amigos, que fizeram a recomendação. Apareceu assim o restaurante Kiberama (situado à Rua Mato Grosso, S/N), servindo inicialmente – e não inserindo receitas de outras etnias a não ser a árabe no cardápio – os seguintes pratos:

·                   Miúdos, tripas, bucho e tudo que pudesse ser consumido do carneiro;

·                   Lentilhas cozidas e temperadas;

·                   Arroz com carne de carneiro;

·                   Quibe cru;

·                   Grão de bico;

·                   Coalhada seca e fresca;

·                   Tabule;

·                   Charuto (preparado com folhas de parreira e recheado com arroz);

·                   Carne de cabrito (toda carne era frita e armazenada em banha do próprio animal);

·                   Esfirra;

·                   Sopas de frango;

·                   Saladas temperadas com muito azeite de oliva;

·                   Pão sírio;

·                   Pasta de berinjela.

A matéria-prima para a preparação desses pratos vinha na maioria das vezes de Cornélio Procópio, PR, e o azeite era sempre comprado no tradicional supermercado Shangrilá (IZAR, 2005). Além dos pratos citados, eram consumidos diversos doces típicos com essência de rosas e damasco (comprados também no supermercado Shangrilá). A principal bebida tomada ao longo do restaurante era o licor de anis.

A influência japonesa também é muito forte na formação dos hábitos alimentares de parte da população de Londrina. Em entrevista realizada em 24 de maio de 2006, o dono do mais antigo restaurante japonês da região de Londrina – Chinzoo Matsuo - expôs um pouco de sua trajetória migratória, relatando a história do restaurante e dos hábitos alimentares da colônia japonesa ao longo do processo de colonização.

Os pais trabalhavam na colônia Água Limpa, em São Simão. Em 1933 a família inteira mudou-se para Valparaíso, onde morou até 1936. O motivo principal da migração foi o surgimento da malária na colônia. Juntamente com mais seis parentes, mudou-se então para Londrina no ano de 1937, começando a trabalhar como fotógrafo – profissão em que atuou por vinte anos.

No ano de 1948 casou-se e a esposa teve a idéia de abrir um restaurante em 1954, localizado à Rua Minas Gerais – a construção ainda era muito rústica, toda de madeira, sendo que com o tempo iam reformando.

Servia-se no início apenas udom – um prato preparado com um tipo de macarrão grosso, feito de trigo – e com um ou dois anos de funcionamento do restaurante o cardápio foi sendo ampliado, sem no entanto, servir as iguarias que se conhecem nos restaurantes japoneses da atualidade.

No ano de 1960, quando a construção do restaurante foi finalizada por completo, precisou-se vender a casa juntamente com o restaurante que outrora foi construído como anexo. Anos mais tarde – uns três anos mais ou menos – a família mudou-se para onde o restaurante atual está localizado (Rua Belo Horizonte, 115). No ano de 1986 foi inaugurado o restaurante já neste último endereço.

A família era muito pequena e nenhuma das pessoas que vieram para Londrina trabalhou na lavoura.

As casas no início eram todas de madeira – como de costume – e a alimentação da colônia japonesa no geral era basicamente o arroz, feijão, alguma carne de vez em quando e cereais em geral.

Um senhor japonês que vinha sempre de São Paulo (não se lembra do nome) trazia alguns produtos típicos do Japão para serem comercializados aqui na região. Foi quando, por indicação desse japonês, foi apresentado um cozinheiro vindo de São Paulo para ajudar na cozinha do restaurante. Esse “novo” ajudante era chinês e inevitavelmente, a culinária chinesa foi se incorporando à japonesa, influenciando no cardápio até hoje.

Nas festas e comemorações da colônia era sempre servido “Teishoko” – prato em que é servido de tudo um pouco; sushi e sashimi.

Os pratos japoneses eram sempre preparados pela sua esposa; e os pratos chineses preparados pelo cozinheiro que veio de São Paulo. Comia-se muito também – especialmente aos fins de semana – conservas preparadas com pepinos, nabos entre outros legumes.

Por um período, o restaurante ficou sendo arrendado pelo cozinheiro “chinês” que preparava os pratos chineses, mas percebeu-se que não estava dando muito lucro e o negócio – com o fim do contrato – não foi renovado.

No início da colonização japonesa surgiram alguns restaurantes japoneses, mas nenhum “sobreviveu”.

Como bebidas servia-se basicamente o saquê – bebida alcoólica à base de arroz fermentado – mas com o tempo o hábito de tomar saquê foi desaparecendo. Após o restaurante ser “transferido” para o endereço atual a família não sofreu nenhuma crise. Na época da Guerra o material fotográfico ficou em falta porque era importado, mas com relação aos alimentos, nada faltou.


Considerações Finais

 

Desde sua fundação, Londrina foi colonizada por muitas etnias, fazendo com que os hábitos alimentares de seus habitantes, potencialmente, pudessem se tornar bastante diversificados. Sua cultura alimentar foi moldada inicialmente a partir dos recursos nativos disponíveis e plantados, bem como dos produtos vendidos em lojas de secos e molhados durante suas primeiras décadas de emancipação.

Na atualidade, a cidade conta com muitos restaurantes de pratos típicos de alguns países e Estados brasileiros, sendo que no presente projeto foi tratado especialmente a influência árabe e japonesa na evolução dos hábitos alimentares na região.

Enquanto no primeiro restaurante árabe de Londrina o cardápio pouco se modificou ao longo do tempo, os proprietários do primeiro restaurante japonês incrementaram em suas receitas, pratos da culinária chinesa.

Conservando as receitas originais ou adaptando novos pratos à culinária típica principal, percebe-se que os restaurantes investigados preservam um pouco da memória cultural da região norte do Paraná principalmente por possuir, ainda, aspectos inseparáveis da trajetória de construção da cidade de Londrina.

 

Referências

 

AGUIAR, P. de. Mandioca: pão do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

AYRES, João Dias. Entrevista [julho, 2005]. Entrevistadores: Fernanda Martins, Joviniano Netto, Márcia Carvalho. Entrevista concedida ao projeto Pés-Vermelhos da Universidade Estadual de Londrina.

BISOGNIN, Realda. Entrevista [maio, 2005]. Entrevistadores: Fernanda Martin, Joviniano Netto. Entrevista concedida ao projeto Pés-Vermelhos da Universidade Estadual de Londrina.

BRUGIN, Alice. Entrevista [junho, 2005]. Entrevistadores: Fernanda Martins, Joviniano Netto, Márcia Carvalho. Entrevista concedida ao projeto Pés-Vermelhos da Universidade Estadual de Londrina.

IZAR, Salime. Entrevista [setembro, 2005]. Entrevistadores: Joviniano Netto, Fernanda Martins, Márcia Carvalho. Entrevista concedida ao projeto A Geografia dos Alimentos no norte do Paraná: influências estrangeiras. Universidade Estadual de Londrina.

KHATOUNIAN, C. A. Produção de alimentos para consumo doméstico no Paraná: caracterização e culturas alternativas. Londrina: IAPAR, 1994.

MATSUO, Chinzoo. Entrevista [maio, 2006]. Entrevistador: Joviniano Netto. Entrevista concedida ao projeto A Geografia dos Alimentos no norte do Paraná: influências estrangeiras. Universidade Estadual de Londrina.

MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: HUCITEC – POLIS. São Paulo, 1984.

ORNELLAS, Lieselotte Hoeschl. A alimentação através dos tempos. 3ª edição. Florianópolis: Ed. Da UFSC. Santa Catarina, 2003.

PARANÁ NORTE. Jornal. Anos de 1935 – 1936. microfilmes. Centro de Documentação e Pesquisa Histórica/ Universidade Estadual de Londrina.

SCHWARTZ, Widson. Entrevista [junho, 2005]. Entrevistadores: Fernanda Martins, Joviniano Netto, Márcia Carvalho. Entrevista concedida ao projeto Pés-Vermelhos da Universidade Estadual de Londrina.

SECRETARIA ESPECIAL DA MULHER – PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE LONDRINA. As diversas faces da mulher na produção alimentar. Londrina, 1999.

TEIXEIRA, E. F. O trigo no Sul do Brasil. São Paulo: Linotype. São Paulo, 1958.

A organização do espaço norte-paranaense: interfaces entre a Geografia da Saúde e a Geografia da Alimentação

RESUMO

 

O presente projeto de pesquisa busca conhecer as principais patologias e causa mortis de parte da população do município de Rolândia, PR, nas décadas de 1930 e 1940 e compará-las com as de Londrina, PR, bem como relacionar a Geografia da Saúde com a Geografia da Alimentação a partir dos hábitos alimentares e sua relação com as doenças que predominavam na época. Espera-se desta forma, espacializar os dados levantados e compreender os aspectos pertencentes à temática proposta ainda tão pouco explorada no norte do Paraná.

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

 

A distribuição espacial de eventos mórbidos relacionados a doenças endêmicas no Brasil ainda é pouco conhecida (XIMENEZ et al., 1999). Embora atualmente tenha crescido o número de pesquisas no campo da Geografia da Saúde que tratam da identificação e localização dessas patologias no território brasileiro, percebe-se que no norte-central paranaense – especialmente nos municípios de Londrina e Rolândia – há uma enorme carência de dados sistematizados que mostrem a espacialização dos fatores de risco a que a população dessa região se submetia nas décadas de 1930 e 1940, época em que a ocupação e expansão da fronteira agrícola ocorriam de maneira intensa.

Investigações geográficas que relacionam saúde/doença/morte de populações “pioneiras” são complexas e envolvem uma série de variáveis que devem ser consideradas na apreensão e contextualização da realidade em que a população de determinada área vivia (COSTA e TEIXEIRA, 1999), sendo assim, uma maneira de aproximar os dados disponíveis aos fatos historicamente verificados. Sugerida como um ramo da Geografia Humana, a Geografia da Saúde [antigamente conhecida como Geografia Médica] tem-se desenvolvido de forma dinâmica, prevalecendo e se preocupando, no entanto, com o conhecimento da distribuição e evolução de doenças sempre do ponto de vista geográfico (LACAZ, 1972). Contudo, percebe-se que nenhuma categoria de estudo isoladamente tem dado conta da pluralidade de fatores que expõem a relação acima, necessitando às vezes, o uso de outros campos de conhecimento, adotando-se eventualmente uma perspectiva interdisciplinar.

Por meio dos antecedentes teóricos mais notáveis e das produções desenvolvidas nas últimas décadas, a geografia da saúde tem-se, aos poucos, constituído uma sólida base epistemológica, merecendo destaque como ponto inicial, os trabalhos desenvolvidos por Max Sorre acerca dos conceitos de gênero de vida, ecúmeno e complexos patogênicos, bem como as interpretações das enfermidades e mortes que, com a aplicação dos conhecimentos geográficos, fundamentam a “geografia das doenças” na atualidade (ROJAS, 1998). Para entender a organização do espaço do norte do Paraná – ou de qualquer outra região – faz-se necessário conhecer a fundo as relações sociais da população, sendo que a análise e tratamento de dados podem permitir, mais que uma verificação de associações entre os fenômenos identificáveis, uma melhor contextualização em que foram produzidos os processos sócio-espaciais (SUSSER, 1994 apud BARCELLOS et al., 1998). Através da compreensão desses processos, pode ser traçada uma aproximação entre a Geografia da Saúde e a Geografia Alimentação, tendo como abordagem os aspectos que envolvem a valorização da dieta alimentar tanto do ponto de vista cultural como biológico.

À luz das investigações realizadas por Castro (2004), buscando as causas fundamentais da alimentação defeituosa de grande parte dos brasileiros, constatou-se que os processos que moldam o nível alimentar de uma população vão muito além de fatores de natureza geográfica [determinismo ambiental], devendo sempre ser entendidas como resultado de fatores socioculturais. Sabe-se que as condições oferecidas pela Companhia de Terras do Norte do Paraná (CTNP) e a construção da estrada de ferro em Londrina, num primeiro momento, contribuíram para que a região se tornasse destino de imigrantes de vários países, chegando ao final de 1938 inclusive, a possuir proprietários oriundos de trinta e duas nacionalidades (MELCHIOR, 2003).

Próximo ao norte-central paranaense, Monbeig (1984) à sua época, expõe a dieta do colono da fazenda da frente pioneira paulista, deixando evidentes as influências dos imigrantes de origem mediterrânea, dos colonos vindos da Europa central e dos japoneses; mostrando também, superficialmente, como esse “intercâmbio” cultural influenciou na composição da dieta alimentar cotidiana. Sabe-se que a ausência de infra-estruturas de saneamento básico na região de Londrina e a alimentação precária de grande parte de sua população ofereciam condições para o aparecimento de determinadas doenças (VILLANUEVAS, 1974). Verificar a influência dessa população que migrou para a unidade espacial de análise do presente projeto – Londrina e Rolândia – torna-se então um desafio a ser superado através da pesquisa proposta.

 

JUSTIFICATIVA

 

As referências escritas a respeito das doenças endêmicas e sua causa mortis no norte-central do Paraná, especialmente nos municípios de Londrina e Rolândia, bem como os aspectos culturais e biológicos da alimentação são escassas e evidenciam uma grande lacuna no que se refere ao histórico de desenvolvimento da região. É de grande importância o levantamento de dados específicos que mostrem como se deu a espacialização das patologias [Geografia da Saúde] e a distribuição dos restaurantes [Geografia da Alimentação] a partir da diversidade de paladares, levando em conta as influências das migrações; e de que forma pode-se contextualizar a produção agrícola dos primeiros agricultores que se estabeleceram (agricultura de subsistência) nesses municípios com as posteriores mudanças decorrentes da cultura cafeeira instalada na região.

Com os dados obtidos espera-se realizar a sistematização em forma de publicações (resumos e artigos) em periódicos e/ou eventos científicos. Assim, começar-se-á a reunião de material que pode ajudar a preencher o vazio bibliográfico existente sobre ambas as geografias tratadas nos municípios em estudo, sem a pretensão, no entanto, de esgotar essa temática ainda tão pouco explorada no norte do Paraná.

 

OBJETIVOS

 

Geral

 

  • Conhecer as principais patologias [endêmicas ou não] e causae mortis da população no município de Rolândia, PR, nas décadas de 1930 e 1940, comparando-as com as de Londrina, PR, bem como relacionar a Geografia da Saúde à Geografia da Alimentação a partir dos hábitos alimentares, e a agricultura de alimentos de subsistência, verificando sua organização espacial.

 

Específicos

 

  • Contextualizar as condições ambientais dos municípios em estudo às situações sociais e à época da expansão da frente pioneira;
  • Conhecer a causa mortis de parte da população que viveu no município de Rolândia nas décadas de 1930 e 1940;
  • Construir um banco de dados contendo informações sobre nome, origem, idade e causa mortis de parte da população de Rolândia nas mencionadas décadas;
  • Conhecer a evolução dos hábitos alimentares de uma parcela da população do norte do Paraná, especialmente sobre Londrina, associando-os aos dados obtidos sobre as condições sanitárias e de saúde;
  • Construir mapas, tabelas e gráficos que representem a espacialização dos fenômenos geográficos levantados; e
  • Sistematizar em forma de resumos e artigos científicos as informações obtidas.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

 

  • Levantamento bibliográfico (livros, jornais, revistas etc.);
  • Análise e organização das informações obtidas no livro de inumações do cemitério de Rolândia, PR, referentes às décadas de 1930 e 1940 em banco de dados;
  • Comparação dos dados obtidos sobre Rolândia, com os dados disponíveis por pesquisas anteriores sobre Geografia da Saúde realizadas em Londrina;
  • Associação de algumas doenças eventualmente causadas por subalimentação e/ou condições sanitárias precárias;
  • Levantamento da diversidade e número de restaurantes existentes em Londrina na atualidade, através do Sindicato de Estabelecimentos, Bares e Restaurantes; e
  • Trabalho de gabinete (sistematização e produção bibliográfica).

 

CONTRIBUIÇÕES ESPERADAS

 

Elaboração de material bibliográfico.

 

LOCAL DE REALIZAÇÃO/ ÓRGÃOS ENVOLVIDOS

 

Universidade Estadual de Londrina – Centro de Ciências Exatas – Departamento de Geociências e Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (BÁSICA OU PRELIMINAR)

 

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segunda-feira, 4 de maio de 2020

Intervenções urbanas e patrimônio: uma reflexão

Resumo: Este artigo pretende demonstrar a relevância teórica e prática das intervenções urbanas nos estudos geográficos, expondo alguns conceitos relacionados à formação de espaços e ao patrimônio urbano no nível internacional e brasileiro. Para tanto, apresenta a maneira como se processam tais intervenções, mostrando também os usos mais proeminentes decorrentes das mudanças setoriais das cidades, sobretudo as que possuem potencialidade para atividades econômicas, bem como as consequências para a população e sua cultura na contemporaneidade. Todas as referências encontradas nos textos foram consultadas no intuito de substituir a expressão “apud”, remetendo aos documentos originais.

Palavras-chave: intervenção urbana; requalificação; cultura; patrimônio urbano; cidades.

Urban interventions and heritage: from the creation of new spaces to social segregation

Abstract: This paper aims to demonstrate the theoretical and practical relevance of urban interventions in interdisciplinary studies, exposing some concepts related to the formation of spaces and urban heritage at the international and Brazilian level. Therefore, it presents the way in which such interventions are processed, also showing the most prominent uses resulting from sectoral changes in cities, especially those that have the potential for economic activities, as well as the consequences for the population and their culture in contemporary times.

Keywords: urban intervention; requalification; culture; urban heritage; cities.


Introdução

A inserção do patrimônio histórico urbano no contexto da valorização do espaço tem levantado importantes questões e problemas de pesquisa em distintas áreas do conhecimento, sobretudo a geográfica. Verifica-se com base no caráter seletivo de diferentes políticas públicas de preservação patrimonial, especialmente as ligadas à dimensão simbólica, que os sítios urbanos tombados vêm se transformando em locais destinados à realização e consolidação do capital.
Relacionar cidade e cultura quase sempre propõe que as discussões e reflexões sobre o patrimônio necessitem ser abordadas a partir das diversas possibilidades que modificam o espaço urbano, entendido como esfera pública e campo cultural, transformando-o num verdadeiro laboratório para os produtores de cultura. De acordo com Jameson (1997) há um imenso desejo pela imagem e pelo que a publicidade propaga sobre as cidades dotadas de bens patrimoniais, sendo que geralmente o que se busca consumir nos centros urbanos não são as construções antigas praticamente irreconhecíveis, mas sim o que se vê na fotografia ou no cartão postal.
O conjunto arquitetônico, acervos de obras de arte, festas, paisagens com atributos naturais e culturais, dentre outros, que compõem o patrimônio urbano revelam uma preocupação que se refere não apenas à necessidade de se preservar a chamada “cidade histórica”, seu centro ou bairros com características especiais, mas também a espetacularização sem compromisso com os valores do passado. De maneira dialética, percebe-se que a cidade preservada passa a impressão de que os aspectos da civilização vêm se tornando um organismo econômico e este último, por seu turno, algo eminentemente cultural, apontando que o consumo de serviços e bens nas cidades dotadas de patrimônio histórico e cultural significativo é fundamentado não nas características típicas que deveriam ser valoradas, mas na lógica corporativa da “indústria cultural” (THOMPSON, 1995) e do “culturalismo de mercado” (ARANTES, 2005).
Desta maneira, a lógica do capitalismo que recai sobre as cidades não leva à compreensão das totalidades. Ao contrário disto, coloca em evidência as áreas especiais no intuito de privilegiar a renda. O que ocorre no chamado “centro histórico” e suas áreas de entorno, por exemplo, é uma transformação dialética dos efeitos do valor de troca e da equivalência monetária, dando origem a um novo estágio em que esta equivalência se sustenta na retração de velhas noções de substância estável com as características identitárias que as unem (JAMESON, 2006).
Na globalização – ou capitalismo tardio - vê-se a cultura se transformar num elemento-chave da sociedade de consumo, expandindo-se por diversas zonas da vida social, repleta de mensagens e signos como em nenhuma outra época. Para Jameson (2001), os produtos culturais geram significados e lucros constituindo-se, simultaneamente, em base e superestrutura da economia, destacando que o capitalismo tardio funciona tanto a partir da lógica cultural como da sociedade de imagens voltadas para o consumo.
Amparado pelo álibi da cultura são então feitas diversas intervenções em bairros privilegiados das cidades, no centro histórico e suas áreas contíguas, consolidando possibilidades econômicas que ao serem referenciadas pela ideia de produção do espaço urbano, representam novas formas de negócios concedidas pelo Estado aos proprietários de imóveis, levando em consideração os dispositivos legais de parcelamento, usos e ocupação do solo.
Neste panorama, surgem estratégias no contexto da valorização do patrimônio urbano como um todo, assegurando conteúdos que se justificam no território e por consequência, a sua própria revalorização. Entretanto, é preciso reconhecer também que a requalificação urbana nem sempre se dá exclusivamente devido aos interesses do capital, podendo em muitos casos, atender às necessidades da sociedade local, a depender das práticas políticas de cada caso.

Alguns conceitos e exemplos de intervenções urbanas e patrimoniais no exterior e no Brasil

Em todo o mundo são observadas notáveis mudanças no patrimônio urbano revalorizado por meio de requalificações, reabilitações, renovações, restaurações e chancelas que são refletidas não somente nas relações diretas de compra e venda de propriedades mas, sobretudo, nos processos indiretos nas mudanças de sua função, a depender do tipo de intervenção que se faz. Os centros urbanos são pontos de referência, pois neles há concentração de grande parte da identidade humana e da sua memória (LERNER, 2001).
As cidades não são formadas apenas por elementos físicos ou agrupamentos de indivíduos, mas também por uma variada gama de interações sociais e expressões de cultura. Assim, o campo cultural é de grande importância em reflexões sobre a temática urbana, abrangendo aspectos ligados aos povos que, por sua vez, estão relacionados à geração de renda e empregos.
Ao auferir valor ao patrimônio, especialmente o que se encontra tombado, transformá-lo em fetiche junto aos outros objetos culturais no intuito de aumentar a capacidade mercadológica e utilizá-lo como mercadoria é dado um fim à essência do patrimônio, corrompendo o significado simbólico posto pela sociedade. Com o fim desta essência a cultura é tensionada a expandir seus limites incorporando o patrimônio às necessidades de mercado que, por sua vez, se encarrega de permitir o consumo por meio de sua inserção no cotidiano das pessoas, tornando-se objetos ligados ao lazer e aos usos do espaço (SCIFONI, 2015), apontando a necessidade de reflexões científicas que sirvam para orientar o processo de planejamento territorial.
A primeira conferência mundial voltada para a proteção dos monumentos históricos foi realizada em Atenas, Grécia, na década de 1930 e resultou num importante documento que trata da conservação do patrimônio. No final da década de 1960 foi dada uma maior relevância à preservação das construções no contexto de sítios urbanos e à preservação da memória coletiva, incluindo a arquitetura vernacular, com a promulgação da Carta de Veneza.
O patrimônio edificado é sempre produto cultural e está associado, normalmente, à cultura do local em que está construído. Entretanto, diversas intervenções urbanas são apoiadas em objetivos ligados à produtividade e à esfera econômica em detrimento de outros aspectos mais fundamentais e urgentes para a coletividade. Por causa da mera estetização dos centros históricos a vida nos demais bairros é colocada em segundo plano, dando origem ao que Lipovetsky e Serroy (2015) denominam “cidade-clichê”, sendo que é preciso levar em consideração que o fenômeno urbano constitui-se, mesmo com suas contradições internas, no lugar onde se reproduzem e decompõem antigas relações sociais, criando ao mesmo tempo novas relações e contradições (LEFEBVRE, 1973).
O uso do termo “requalificação” é relativamente novo, tendo se popularizado em diversos países nas décadas de 1970 e 1980 para se referir aos processos de revitalização, recuperação ou reabilitação urbana. De acordo com Ferreira e Craveiro (1989), a palavra requalificação está associada à qualidade urbana relacionada também às questões econômicas, ecológicas, sociais e culturais. Assim, subentende-se que os processos de requalificação devam incorporar projetos que contemplem a qualidade do ambiente físico e ampliem o nível de satisfação da sociedade sobre o espaço construído e sobre o patrimônio urbano.
Embora a região central das cidades seja a mais destacada nos projetos de requalificação urbana devido à deterioração, cabe destacar que outras áreas também são passíveis deste ou de outros processos. Tanto a renovação como a requalificação e reabilitação urbanas são conceitos que não se excluem, estando direcionados à estetização ou terceirização das cidades causadas por empreendimentos públicos e privados, genéricos ou específicos, que envolvem investimentos massivos para a implantação de objetos que se materializam no território e permanecem depois de sua realização para atender à dinâmica local (COSTA, 2013).
A reabilitação urbana, por sua vez, é um conceito inerente a toda prática de transformação do espaço e compreende desde a recuperação de edifícios até os espaços públicos com a função de melhorar as condições de habitabilidade e usos, preservando o caráter fundamental da área (DGOTDU, 1998). Isto quer dizer que o conceito de reabilitação leva em conta o respeito pelas características arquitetônicas e, ainda que não se confunda com a restauração, é importante por manter as características originais e funcionais, envolvendo muitas vezes o restauro. As condições de uso são modificadas, mas se conservam os atributos físicos e funcionais, seja com o objetivo de aumentar a capacidade atrativa para os habitantes ou ainda, com a finalidade de possibilitar a existência de atividades sociais e econômicas que sejam compatíveis com as de residência.
Por seu turno, a renovação urbana ocorre por meio da substituição das estruturas existentes, envolvendo demolições e construções de novos edifícios. É caracterizada pela reconstrução de áreas urbanas levando em conta a modernização do território, ocorrendo mudanças formais. De acordo com Castells (1982), a renovação urbana se dá com demolições de imóveis e construções de novos equipamentos públicos e prédios estando, historicamente, baseada na implantação de novas tecnologias e materiais disponíveis no mercado da construção civil, além da infraestrutura de renovação territorial. Na renovação urbana, segundo Maricato (2001) ocorre a substituição de construções envelhecidas e desvalorizadas, com problemas de manutenção, por edificações novas e maiores, marcadas por estética pós-moderna que é seguida de ocupações intensas do solo urbano.
O movimento de renovação urbana está, assim, relacionado a uma tendência de estímulo à revalorização da economia dos lugares, ao passo que a requalificação urbana está voltada para a adoção de políticas de resgate do valor simbólico – tanto para o mercado como para os moradores – das áreas urbanas. Com as políticas públicas, diversas cidades em todo o mundo vêm passando por processos de intervenções em áreas que são legitimadas pelo Estado e pelo mercado. Após os anos 1960 surgiram em vários países ações voltadas à requalificação, renovação, reabilitação e revitalização dos centros de cidades que se encontravam degradados e com seu patrimônio urbano deteriorado, em alternativas para solucionar os problemas espaciais, sociais e econômicos que se situavam especialmente nas áreas mais antigas das cidades.
Neste panorama, as cidades são imersas numa lógica dispersiva e disjuntiva do modo de produção capitalista que, por meio das transformações de áreas especiais como o centro urbano e sua elitização, quase sempre subsidiadas pelo Estado, está cada vez mais distantes das totalidades. As intervenções no território que setorizam as cidades buscando uma maior renda ou lucro para grupos específicos são características históricas das cidades brasileiras, mas não exclusivas, na medida em que as políticas de intervenção favorecem um planejamento que não visa ao todo, e sim à dispersão e fragmentação urbanas.
Para Harvey (2004), o poder do sistema capitalista enquanto sistema social reside na capacidade de mobilizar diversos imaginários de empreendedores, promotores do desenvolvimento, arquitetos e até mesmo de burocratas do governo em atividades materiais destinadas a manter o sistema em constante reprodução. Percebe-se que as apropriações e usos da cidade não se restringem aos negócios, se expandindo, ao mesmo tempo, para o mundo cultural, artístico e político. A globalização é um dos termos mais hegemônicos para se entender a economia política do capital internacional e o empreendedorismo urbano que surge em meados do século XX na Europa e nos Estados Unidos (HARVEY, 2004).
Assim, as políticas urbanas ligadas à cultura na Europa ocidental sofreram intensas transformações na década de 1980, deixando de forma gradativa os objetivos de difusão da produção do fomento ao multiculturalismo e da alta cultura. Em vez disto, as políticas se voltaram para a criação do emprego da cultura como uma das maneiras de promover a regeneração urbana das áreas decadentes, o estímulo à economia e a criação de imagens dinâmicas e cosmopolitas das cidades como forma de atrair mão-de-obra qualificada e empresas de setores dinâmicos como, por exemplo, as ligadas ao turismo (BIANCHINI, 1999). Tudo isto influenciou nos processos de requalificação urbana e intervenções patrimoniais.
O conceito de requalificação urbana abarca alterações que ocorrem de forma integrada nas características de áreas urbanas que estão em transição devido aos processos de declínio, incluindo aspectos de caráter econômico, social, físico e ambiental (MOREIRA, 2007). No que se referem aos aspectos econômicos, vê-se características dos setores secundário e terciário, assim como os meios de transportes e comunicações, adaptando-se às exigências de consumidores, levando à criação de novos espaços para se desenvolverem.
Teoricamente, os aspectos sociais da requalificação urbana amparam-se na necessidade de integrar toda a população, surgindo a possibilidade de existência de diversos cursos de qualificação e atividades de apoio social. Entretanto, um dos problemas que se verificam nos processos de requalificação urbana é a chamada “gentrificação” (ou gentrification), que ocorre quando a população dos bairros requalificados e/ou reabilitados migram para outras zonas mais empobrecidas e baratas.
A gentrificação é um termo que tem origem na língua inglesa, cujo vocábulo “gentry” significa “pequena nobreza”. O termo “gentrification” foi criado por Glass (1964) para se referir às mudanças sociais ocorridas em alguns bairros de Londres no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, cujo processo se consistia na desigualdade social e segregação urbana, com diminuição dos níveis de qualidade de vida para uma parcela da população, inclusive tratadas nos estudos sobre patrimônio e em diversos campos do conhecimento, com a expulsão de antigos residentes e comerciários dos bairros requalificados e com oferta de equipamentos culturais e históricos, para dar lugar a outros grupos sociais de alta renda.
O imprescindível conceito de qualidade de vida equivale a um dos objetivos finais da requalificação urbana, apontando que se determinada área é agradável e segura torna-se mais habitável, inclusive do ponto de vista do turismo, fenômeno atual cada vez mais em alta. O patrimônio urbano e cultural, representado pelos bens materiais e imateriais, representam uma das principais motivações de viagens e objeto de consumo no âmbito internacional (MCKERCHER, 2002; RICHARDS, 1997).
Um dos exemplos internacionais mais famosos de intervenção urbana é o de Barcelona, na Espanha, ocorrida por ocasião das Olimpíadas de 1992, e que teve o seu centro antigo estudado por diversos pesquisadores do mundo inteiro. De acordo com Claver (2006), Barcelona possui características específicas neste processo e se diferencia dos exemplos de outras cidades na Europa, pois não teve a abrangência social que se esperava com o fato de que a prefeitura priorizou a localização seletiva de equipamentos culturais em pontos estratégicos, gerando críticas sobretudo por parte de associações de moradores.
A realização dos jogos olímpicos fez com que diversas áreas de Barcelona fossem reconstruídas num processo de renovação que, além de ter levado às diversas mudanças nos usos do solo urbano, propiciou a instalação no centro histórico de serviços ligados à comunicação, publicidade, informação e outros setores especializados relacionados às grandes corporações. Somaram-se esforços de ordem pública e privada e foi a primeira vez que um parque olímpico foi dividido em quatro espaços menores numa distância menor do que 5 km do Centro, além da criação de outras subsedes (AGUIAR, 2011).
Segundo Aguiar (2011), o conjunto criado em Barcelona foi integrado a um complexo viário, levando equipamentos culturais e esportivos a algumas áreas. Diversos bairros melhoraram e a infraestrutura construída contribuiu para o aumento da qualidade de vida dos habitantes. Velhos edifícios foram restaurados e as construções novas passaram a ser usadas regularmente depois da realização das Olimpíadas. Várias escolas de arquitetura e urbanismo de todo o mundo passaram a utilizar como exemplo de intervenção bem-sucedida o caso de Barcelona no intuito de explicar e propor a transformação de centros tecnológicos e terciários no contexto da economia globalizada.
Na cidade de Madri o plano de reabilitação do Centro entre 1988 e 1990 buscou realizar intervenções integrais de conjuntos urbanos singulares de acordo com os valores patrimoniais e por meio de seus problemas. A área central encontrava-se em ruínas e havia a latente necessidade de reabilitação, sendo desenvolvidos programas de reabilitação arquitetônica em diversas praças. Alguns projetos culturais como o Museu Guggenheim de Bilbao, também na Espanha, simbolizam um renascimento cultural e econômico de locais afetados pelo processo de desindustrialização das décadas de 1970 e 1980 (BIANCHINI, 1999), numa tentativa de acumular grande capital simbólico e marcas de distinção no intuito de conseguir rendimentos financeiros tanto a partir do turismo como da atração de capital internacional e especulação imobiliária.
No caso de Nova York houve a delegação do poder público ao capital privado na recuperação e qualificação de Manhattan, culminando com a expulsão da população pobre que passou a se deslocar para os bairros segregados (COLVERO, 2010). Cesarino (2013) aponta que um dos primeiros investidores de áreas imobiliárias nos Estados Unidos, Tony Goldman, criou e implementou muitos projetos de reabilitação urbana em bairros como SoHo, na década de 1970, além de revitalizar áreas na Flórida e na Philadelphia na década de 1980.
A estratégia de requalificação de Goldman incluía métodos e táticas reconhecidas no mercado imobiliário dos Estados unidos e, devido à situação de abandono de autoridades pelos centros urbanos até a década de 1980, a iniciativa privada atuou com certo sucesso, já que os processos de gentrificação verificados durante os primeiros anos de sua atuação não foram significativos, pois buscava-se incluir os habitantes originais dos centros como parte importante de seu plano de ação, haja vista que essa população era parte representativa da contracultura que surgiu na década de 1980 e isto era incorporado em projetos de marketing (CESARINO, 2013). A qualidade do ambiente foi garantida pela existência de um sistema de circulação para pedestres e pela arquitetura, buscando também reinventar a atmosfera dos bairros centrais compostos por construções de valor histórico.
É sabido que o capital fluido e a mobilidade empresarial de diversas dimensões junto à valorização da terra e aos movimentos de atores econômicos, favorecem o crescimento do setor imobiliário e dos segmentos mais proeminentes, transformando o consumo urbano e os estilos de vida nas cidades (SALGUEIRO, 2006).
Para compreender as transformações atuais de antigos centros urbanos e de seu patrimônio é necessário transcender os discursos sobre o renascimento do Centro e seus impactos sobre as populações com menor poder aquisitivo. É preciso que a demanda dos espaços urbanos requalificados seja assegurada por grupos econômicos e populacionais diversos com a inserção no mercado habitacional e variados itinerários residenciais. Estes fatores devem surgir antes das intervenções urbanas, pretendendo-se o entendimento sobre outras possibilidades de apropriação do espaço urbano (CRIEKINGEN, 2006).
Quando colocadas em áreas limitadas, as novas funções urbanas estabelecem tensões e interações mais dinâmicas entre os habitantes das comunidades, sendo que, em contrapartida, numa análise histórica, percebe-se que a importância coletiva das cidades propicia a aglomeração de funções que ficam desorganizadas e dispersas (MUMFORD, 1991). A cidade é sempre fruto de um processo histórico e representa a construção de culturas e hábitos que vão além de sua própria existência. Assim, o fenômeno urbano e todas as suas características devem ser analisadas à luz da totalidade, da globalização e de seu movimento contínuo.
A experiência brasileira em projetos de requalificação, revitalização e outras intervenções urbanas é justificada por dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao desenvolvimento turístico que sempre ocupou um lugar de destaque. O segundo, à necessidade de recuperar o patrimônio histórico que se encontrava muito deteriorado, correndo o risco de desaparecer (KÖHLER, 2008).
Em Salvador, a partir do início da década de 1990, a importância do Pelourinho e sua arquitetura colonial barroca foi chancelada pela UNESCO e se deu com investimentos do Banco Internacional de Desenvolvimento. Neste caso específico, a maior parte da população que residia no bairro foi expulsa na operação de requalificação e reconstrução urbanas. O local passou a abrigar bares, restaurantes, lojas e museus que não eram necessariamente frequentados pelos antigos moradores, mas sim por turistas de todo o mundo. Os moradores expulsos do Pelourinho passaram a ser vistos, nesse processo, como pessoas que possuíam modos de vida e hábitos patogênicos. De acordo com Gledhill & Hita (2018), no projeto de reconstrução do patrimônio cultural que daria à Bahia uma identidade privilegiada do ponto de vista histórico encontra-se como um dos motivos principais o fato político de uma elite branca que desejava restaurar o Pelourinho para a cidade como um território em que orixás africanos seriam celebrados ao lado de santos católicos e mosaicos portugueses. Desta forma, reinventaram um valor baseado – do ponto de vista da elite – na identidade regional tida como positiva, como um lugar que deu origem à nação, e não apenas como um espaço decadente e imutável. Ocorre que o Pelourinho se tornou um espaço fortemente marcado pelo comércio de serviços especializados voltados ao turismo, de souvenires a bares, lojas e restaurantes, evidenciando a reprodução do capital e segregando mais ainda parte da população da cidade.
No Rio de Janeiro, as Olimpíadas de 2016 foram marcadas por intervenções urbanas recentes. Um dos principais discursos governamentais no dossiê de candidatura para os jogos olímpicos estão relacionados às questões do meio ambiente. De toda forma, de acordo com Nogueira (2016), nenhuma das promessas do setor ambiental foi concluída, a começar pela despoluição da Baía de Guanabara, da Lagoa Rodrigo de Freitas, dos projetos de reflorestamento da mata atlântica, dentre outros. A requalificação urbana nesta ocasião se destacou pela implantação e readequação do sistema de saneamento das zonas oeste e norte, das melhorias e incrementos no setor de transportes, de novos sistemas de controle a enchentes e do Projeto Porto Maravilha. Este último, é fruto de uma operação urbana consorciada entre o poder público e a iniciativa privada com foco na revitalização da zona portuária. Entretanto, as intervenções urbanas neste caso também causaram a expulsão das populações mais pobres para zonas periféricas da cidade.
De acordo com Oliveira & Corradi (2017), a maior parte dos projetos olímpicos realizados no Rio de Janeiro ocorreu com financiamento da iniciativa privada por meio da parceria com o governo, principalmente o municipal. Este fato faz com que as instalações olímpicas sejam exploradas pelos investidores por meio de concessões legais, usando e ocupando cerca de 70% de toda a área do parque olímpico. Ademais, o governo do Rio de Janeiro insiste nas estratégias de marketing, criado uma imagem de cidade sustentável, histórica, cultural, tecnológica, maravilhosa, sobretudo para esconder a realidade negativa do município no âmbito global e ocultar a situação de uma grande população que sobrevive num contexto de violência urbana e pobreza extremas na atualidade.

DISCUSSÃO

Os territórios são criados entre relações de poder que levam a diferentes e novas tendências de saberes de maneira ampla, prevalecendo a ressignificação das cidades com a maximização dos desejos particulares que muitas vezes não são compatíveis com a satisfação de necessidades coletivas. Para Costa (2013), a requalificação e renovação urbanas tomadas como paradigmas de políticas públicas para “novas” cidades devem, desta maneira, evidenciar a contradição em vez de endossá-la com base na compreensão das cidades como totalidades de sistemas complementares e simultaneamente contraditórios.
A expansão dos mercados globais ligados aos serviços especializados e às finanças, bem como a necessidade da existência de outras prestações de serviços que contribuem para o surgimento de espaços institucionais e corporativos leva à existência de arranjos econômicos transnacionais. Tudo isto cria um sistema urbano que funciona por meio da operação de diversos lugares, gerando demanda por prestação de serviços de circulação que recriam os lugares universais e singulares para, então, atender a uma demanda específica (SASSEN, 1998), influenciando fortemente nos processos de intervenções e requalificação urbanas na medida em que lança mão de novas culturas.
De acordo com Harvey (1992), a “massa cultural” tem um poder que é desproporcional ao influenciar o consumo de parcelas amplas da população por meio da imposição de padrões de consumo, comportamentos, opiniões e estilos de vida. Isso colabora para a crescente comercialização de bens culturais, encontrando-se nos domínios do capital corporativo. Se por um lado a massa cultural visa ao lucro por meio da criação e venda de produtos ligados à cultura, por outro, há também consumidores que preferem o consumo cultural diferenciado pautado na lógica do capital simbólico e da identidade cultural.
As atuais políticas de intervenção urbana têm revelado espaços abstratos, seguidos da prática ideológica que se assenta nos pressupostos da requalificação, renovação, revitalização e outras intervenções urbanas. Simultaneamente a isto, as políticas urbanas servem como subsídio à reprodução do capital e dão continuidade a processos de fragmentação. Isto quer dizer que, em maior ou menor grau, a depender do caso, contribui para as segregações espaciais que se materializam numa hierarquia de classes sociais.
Del Rio (1990) assevera que o racionalismo exacerbado faz com que as cidades se transformem em simples problema de funcionamento, maximizando os investimento e viabilizando a reprodução do capital. Tal simplificação não leva em conta a complexidade do patrimônio histórico, da complexidade da vida urbana, da inter-relação entre funções e atividades desenvolvidas pelas pessoas e da importância das redes pré-estabelecidas. O território urbano caracteriza-se por processos de reconstrução de centros urbanos e de rápida construção de unidades habitacionais que visam à atender a uma demanda representativa, facilitando a absorção de todo o contingente populacional inserido no sistema de produção.
Estimular as pessoas, por meio de propagandas e outras estratégias, para morar no Centro ou em áreas específicas da cidade é uma poderosa alavanca para a requalificação urbana com transformações que melhoram as áreas, sendo que o mercado imobiliário capta um aumento no interesse das pessoas por diversas razões, como, por exemplo, o chamariz de que é interessante morar próximo ao trabalho ou perto de equipamentos culturais. É interessante notar também que a paisagem se torna um elemento importante valorizado pelos negócios imobiliários, compondo o processo de revalorização das cidades e atraindo novos moradores.
Em todo caso, de acordo com Maricato (2001), é preciso levar em consideração que nem todos os edifícios são passíveis de recuperação, a depender do estado de degradação em que se encontram. Isto, inevitavelmente, faz com que a execução de planos de reabilitação ou requalificação incorporem novas construções, assim como a demolição de edifícios muito antigos. Assim, o que se nota em intervenções urbanas que privilegiam zonas residenciais e comerciais de classe alta é uma tendência reducionista que não leva em conta toda a população urbana.
O ideal nos processos de intervenção urbana é possibilitar o acesso universal das benfeitorias e projetos territoriais, extrapolando os limites da área requalificada ou renovada. É necessário também levar em conta a dinâmica da globalização com suas características bastante peculiares. Segundo Hall (2006), refletir sobre as mudanças atuais pelas quais passam as cidades exige levar em consideração as descontinuidades, fragmentações e rupturas que, por sua vez, são impulsionadas pelas intervenções urbanas. É no processo histórico que as cidades – incluindo a economia e as características arquitetônicas – devem ser apreendidas.
Embora haja diversos investimentos na recuperação do patrimônio, os projetos de intervenção urbana supracitados não possuem objetivos meramente culturais voltados à preservação da memória e da arquitetura do passado. Em vários casos os projetos fazem parte de estratégias amplas de desenvolvimento econômico em que o patrimônio preservado é usado como instrumento para fomentar atividades ligadas ao turismo e ao lazer, bem como para a criação de uma imagem da cidade voltada aos negócios de várias naturezas.
Lucini (1996), ao tratar da requalificação urbana, enfatiza que na recuperação do nível qualitativo preexistente o que se busca é devolver a uma determinada área a condição qualitativa integrada no contexto do habitat urbano coletivo, relacionando uma série de aspectos metodológicos tidos como importantes na aplicação necessária em intervenções ligadas à requalificação, recuperação e/ou criação de novos assentamentos. Estes aspectos baseiam-se nas avaliações de pré-intervenção, em que são apresentados modelos em função da prática administrativa, econômicas e ligadas à interação dos agentes, e pós-intervenção, em que são identificados os procedimentos que podem responder aos modelos de tomadas de decisão na pré-intervenção.
Dentre os aspectos positivos dos projetos de requalificação, reabilitação, revitalização e outras intervenções urbanas em áreas centrais dotadas de patrimônio histórico e cultural com diferentes níveis de degradação podem-se citar os altos investimentos na conservação e recuperação da arquitetura e do urbanismo, buscando um aumento da visibilidade diante da sociedade e do governo, bem como do desenvolvimento econômico propiciado, dentre outras atividades econômicas, pelo turismo. Entre os pontos negativos desse processo podem ser citadas a segregação social, espacial e econômica da população, a criação de espaços privilegiados de lazer, que se encontram em locais restritos para pessoas que estão dispostas a pagar pelo uso e a própria perda da essência do patrimônio que, como citado anteriormente, ocorre quando este se torna objeto de consumo e lucro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O patrimônio urbano, com todas as suas características arquitetônicas e históricas, deve ser tratado à luz de teorias científicas interdisciplinares mas, sobretudo, levando em conta as necessidades dos habitantes de modo que sejam conservadas as diferentes culturas existentes e os modos de vida. Se por um lado a preservação e requalificação de certas áreas das cidades como o Centro, por exemplo, vêm ocorrendo de forma a consolidar e reproduzir o capital, por outro, é latente a necessidade de participação das sociedades nos processos decisórios, diminuindo os efeitos negativos gerados pela expulsão de antigos moradores. Estes, por sua vez, devem ter o direito de permanecer em seus locais de origem, tendo o poder público como ator central nos processos de melhoria da qualidade de vida.
Não há dúvidas de que o patrimônio urbano necessite passar por intervenções que o preserve e o coloque em evidência, mas é preciso que isto ocorra para melhorar as condições de permanência e usos da população como um todo, não se tornando meros troféus do passado e/ou atrativos turísticos que muitas vezes sequer são reconhecidos como materialização cultural de seus habitantes. As diversas intervenções urbanas e chancelas auferidas nos locais de memória das cidades são importantes na medida em que colaboram para melhorar a qualidade urbana e de habitabilidade. Por fim, é necessário considerar que a cidade não é feita apenas de construções, mas também de relações humanas que se dão no seu espaço ao longo do tempo.

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