Maria de Jesus é uma artista contemporânea autodidata que vive na cidade de Tanhaçu. Seu trabalho atual consiste na criação de desobjetos, desenhos e pinturas que retratam o bairro onde vive, sobretudo as maravilhas sobreviventes da Lagoa do Governo, numa tentativa de explorar a fauna, flora e paisagem de modo peculiar. Os suportes usados para suas pinturas vão desde pano de pratos até telas de linho, financiadas por colecionadores que a descobriram recentemente e que, inclusive, a incentivaram diante de sua vocação para a arte. O conjunto da obra revela uma artista com destreza e força plástica como pouco se vê no universo da arte contemporânea na região onde vive. A certa altura, começou a retratar seus filhos que segundo ela, foram extirpados pela Justiça para serem adotados por famílias que ela não tem contato. Como crítico não me interesso apenas pelo que ela faz no campo das artes plásticas, mas principalmente pela força que a leva a criar obras sensíveis e de uma delicadeza extrema, permeando pelo expressionismo abstrato. Como a própria artista afirmou para mim, em outras palavras, trabalha com temas de maneira semelhante, transformando-os em formas abstratas e explorando os efeitos tonais da luz e das cores sobre o que cria. Neste sentido, os trabalhos artísticos de Maria de Jesus (popularmente conhecida como Cida da Lagoa) são construções que privilegiam a escrita da alma e a visão de arte de Nise da Silveira, que expressam as imagens do inconsciente e não tanto a palavra.
Maria de Jesus teve seu primeiro contato com a arte desde criança, quando enfrentava os dilemas de ser uma filha adotiva e, sobretudo na idade adulta, mãe de 6 filhos que, segundo ela, são sua inspiração para a vida e seu crescimento profissional, passou a colecionar obras de arte de artistas do nível de Thiago Santana, outro que a inspira segundo ela, pois os trabalhos além de bonitos são organizados, até mesmo pela sua formação como artista plástico na Universidade Federal da Bahia. A abordagem crítica dada a ela neste blog não é apenas uma forma de dar voz a uma artista nunca citada na vida, ainda não respeitada como artista, mas que além disto, prepara quitutes e comidas deliciosas dignas de um bom restaurante. Assim, percebe-se que a comida também já foi tema de sua produção, haja vista as dificuldades que já enfrentou no contexto de uma cidade com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo e que, sem dúvida, requer dos habitantes jogo de cintura para sobreviver (vide texto “Tanhaçu: de ‘boca de sertão’ à ‘boca do Inferno” que publiquei há poucos dias aqui no blog). Tendo começado sua produção artística com performances em alguns locais públicos da cidade, especialmente nos encontros informais com amigos e conhecidos, Maria de Jesus, em 2024, produziu icônicas cenas dignas do mais fino humor teatral.
Cida, como é chamada pela família, optou por assinar Maria de Jesus em seus trabalhos postos à venda e a crítica genética que a move reconhece também que sua força vai além da capacidade de desenhar ou pintar, de criar esculturas com objetos que não são usados para os devidos fins, também chamados de “desobjetos”, numa força motriz que a move dependendo de seu humor, encontrando posteriormente em fotógrafos levados por mim a sua casa a possibilidade de elaborar um livro com alguns de seus trabalhos. Além deste texto, me comprometi a publicar um artigo sobre ela em revista especializada. Eu fui um destes que solicitaram o acesso ao seu meio, à sua casa, desvelando altares e prateleiras criadas simplesmente para enfeitar sua vida ou para, como ela mesma me disse: pedir e agradecer aos orixás e a Deus o que deseja. É uma mulher de paz que já sofreu violência e foi inclusive ameaçada por um vizinho que não a suporta, mas que vai ter que se mudar do bairro primeiro do que ela, pois na semana que vem eu irei à delegacia denunciar o bandido.
Ademais, não entrando no mérito da vida pessoal da artista, um tanto caótica, mas cercada de pessoas que a amam, seus trabalhos são vendáveis e colecionáveis. Uma estimulante síntese entre arte e espírito. Não são as molduras escolhidas para guardar seus desenhos e pinturas que os tornam especiais. São realmente o amor a fonte do que ela produz o que se dispõe a vender. Para Maria de Jesus, esse mundo ainda é de encantamento e aventura, englobando a grande oferta de objetos usados e alimentando uma relação dinâmica com tais materiais. Ela consegue também levar o lixo ao luxo dando destaque às embalagens vazias descartadas nas proximidades de suas casas. Por volta de um mês atrás, produziu peças que funcionam como um fio condutor entre sua obra e o mundo vivido, entre sua obra e o território utilizado, entre sua obra e sua própria vida. Ao dar um tratamento contemporâneo para temas clássicos como borboletas, flores e frutas, ou objetos mais geográficos como paisagens, Maria de Jesus consegue transformar linguagens das naturezas-mortas numa espécie de linguagem fragmentada, como também espelho de nosso tempo.