Há mais de uma década, num quarto imundo de um antiquário onde trabalhei com afinco em São Carlos (SP), quando ainda se situava na Rua Larga, descobri uma pintura com assinatura de Portinari no canto inferior direito. Tratava-se de uma pintura feita com óleo espatulado sobre madeira e que, só recentemente, com ajuda de especialistas do Brasil e de Portugal, descobri se tratar de uma autêntica obra falsa do grande pintor brasileiro. Sem ajuda do Projeto Portinari, um dos melhores já vistos na Internet, que tem como presidente João Candido Portinari, filho do pintor, chego à seguinte conclusão, também pedindo desculpas pelo engano e por ter passado tanta informação na rede:
Eu fui aprovado em concurso público para Educador do Museu Casa de Portinari em Brodowski em vigésimo nono lugar, sendo que foram mais de quinhentas pessoas concorrendo a uma vaga, e nesta última publicação do ano, teço comentários sobre o trabalho que encontrei e também sobre minha emoção de encontrar algo que sugeria ser uma obra autêntica, já que imediatamente a dona me disse que se eu conseguisse o certificado teria 20% do valor de venda.
O trabalho, após serem analisadas amostras de tinta no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, sob a companhia do doutor Emerson Finco Marques (a quem muito devo tanto em nível profissional como pessoal), que é um grande especialista em Espectrometria de Massas, não tem mais do que 20 anos de existência. Em torno da obra giram os seguintes comentários da atual dona (perco a amizade, mas não perco minha ética no que acredito na arte e na ciência. Será um livramento): “trata-se de um quadro que foi feito para uma amante no Uruguai”; “a obra foi comprada num banco da Argentina em leilão”; “a obra é de uma amiga”. Para cada pessoa ela dizia uma coisa. Tudo mentira!
Portinari não tinha amantes como ela sempre diz aos que visitam seu antiquário e eu digo isto porque, com a aprovação para educador do museu que leva seu nome no interior de São Paulo, não cheguei a nenhuma informação oficial, em periódicos, livros ou mesmo entrevistas com pessoas que são especialistas no pintor. E no passado conversei com o filho dele também via Facebook, que me esclareceu e me agradeceu por preservar a imagem do pintor. Preservo mesmo porque é um dos meus preferidos e tive que estudar muito para ser aprovado no concurso. Quem aqui tem a audácia de falar mal de Portinari e difamá-lo, o pintor dos pobres brasileiros, que mais retratou os eventos sociais no nosso Brasil? Quero que alguém me diga qual é o problema de Portinari para, também como educador aprovado em concurso, dizer que ele pintaria para amantes seja no Uruguai seja em qualquer outro lugar, com uma família linda e exemplar? Pois ele era cidadão do mundo (ler Milton Santos), assim como eu tento ser, livre de barreiras políticas e considerando a humanidade uma só. Só não morro de vergonha por ter tentado autenticar um quadro (bonito, por sinal) falso porque agora reconheço meu engano e meu encantamento diante da descoberta. E tenho a humildade de assumir. Se eu fosse do Projeto Portinari trataria de acionar a Polícia Federal para investigar o caso, pois além de Portinari encontrei também quadros falsos de Marc Chagall no início da Avenida Morumbi em São Carlos.
O trabalho em destaque retrata a “mão de lavrador”, mas não passa de um expressionismo exagerado, lambuzado de óleo não dissolvido, não levando em conta as devidas proporções se compararmos com as outras obras que imita. É falso porque (eu não estava no momento em que foi pintado) além de tudo, esconde a gritante necessidade do autor em, não seguindo a técnica habitual de Portinari, imitá-lo; e já o vejo com outros olhos. A imitação não chega a ser uma cópia porque não leva em conta a experiência habitual do pintor, sendo, portanto, uma releitura assinada por alguém que certamente tem o hábito de falsificar. O mérito do artista não está apenas em produzir grandes obras de arte, mas sim de colocar seu “sangue” (linguagem figurada) no que produz. E o que se vê neste contexto é uma obra que com o tempo mudou de cara, depois de ser guardada em locais propícios para incorporar as marcas do tempo, com mofos e defeitos provocados na locomoção, dando algum aspecto de antiguidade, mas que na verdade não passa de uma representação barata que, com olhar atento, qualquer um pode executar.
2024 para mim, no quesito obras de arte, superou todos os outros anos de descobertas e análises. No antiquário em São Carlos também há obras de Marc Chagall falsificadas, penduradas na parede, mas que o Sol não deu conta de mostrar as marcas do tempo. Sem assinatura, algumas obras tendem a parecer originais, mas hoje em dia existem tecnologias capazes, como as que utilizei na USP e que são usadas no Projeto Portinari, de elucidar o engano e trazer à tona a beleza ou a feiúra de determinado artista. Falsificação é crime. Isto porque arte é testemunho espiritual e Portinari já não está aqui entre nós para dizer se foi ele mesmo quem pintou. Ademais, chegando ao fim deste velório, manifesto aqui minha preocupação e atenção quanto à possibilidade de ser ou não original do ponto de vista de outros críticos de arte e digo aos quatro cantos do mundo: é FALSO. Se eu fosse do Projeto Portinari (embora carregue com a aprovação no concurso e me sinta parte deste rol mesmo não tendo vínculo nenhum com o projeto, defendendo a sua memória com unhas e dentes) trataria de acionar a Polícia Federal para recolher a obra e destruí-la. Ou então exposta, como aconteceu numa exposição na Argentina com obras de Portinari já decididamente chanceladas como falsas. Sem mais, reitero aqui meu compromisso em dizer que a constatação não se deu por acaso. Houve um processo de convívio e vivência com o quadro que não corresponde à realidade. Eu o levei, na confiança, para meu quarto e fiquei analisando por mais de um mês o que pretendia o autor. Vivi uma emoção pura e ingênua em acreditar na dona e no contexto em que a obra, antes de mim, passou. Mas não passou de uma ilusão. E assumo meu erro aqui agora publicamente para também ganhar alguma credibilidade na área, embora não tenha muito esta preocupação.